Publicado originalmente em setembro de 2019.
A preocupação dos consumidores com o alcance dos carros elétricos é tão grande que ganhou termo próprio pelas marcas: range anxiety, ou “ansiedade de autonomia”, em tradução livre.
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Quem já confiou demais na luz de reserva conhece bem essa aflição de o carro ficar sem combustível antes de chegar ao posto mais próximo.
Para tentar superar isso, os fabricantes vêm investindo pesado para que seus elétricos possam ir cada vez mais longe. O recém-lançado Jaguar I-Pace é um exemplo.
O SUV de R$ 437.000 pode rodar, segundo a marca, até 470 km antes de apelar para a tomada – é a maior autonomia entre os elétricos que estão à venda no Brasil e os que chegarão em breve.
Esse índice é obtido por meio de uma rigorosa norma, chamada “procedimento padronizado global para testes de veículos elétricos de passeio”, ou WLTP na sigla em inglês.
Montadoras e órgãos defendem que este ciclo é mais próximo da realidade dos consumidores. Mas até onde os elétricos realmente vão?
Como se comportam nos quilômetros derradeiros? Respondemos a essas e outras perguntas em um teste exclusivo e pioneiro: QUATRO RODAS convocou os principais elétricos disponíveis ou confirmados para o Brasil para um desafio de autonomia.
Atenderam ao chamado I-Pace, Renault Zoe, Nissan Leaf e Chevrolet Bolt. Ficaram de fora BMW i3 BEV (versão sem motor a combustão), JAC iEV 40 e Audi e-tron.
O i3 BEV, que roda até 335 km, não estava disponível para teste. O e-tron tem 411 km de alcance, mas ainda está em homologação no Brasil.
Por fim, o chinês iEV40 não tem sua autonomia pelo ciclo WLTP divulgado pela marca. Sem essa referência, optamos por deixar o modelo de fora do teste.
Desafio logístico
Ao mesmo tempo que definimos os modelos, elaboramos uma estratégia para o teste. Estudamos quase uma dezena de opções, mas a mais viável foi rodar na Via Dutra, principal estrada com pontos de recarga rápida do Brasil.
Além de possibilitar a reposição da energia dos carros descarregados, poderíamos avaliar o atendimento da concessionária à ainda pequena frota de elétricos do Brasil.
Isso exigiu tirarmos os elétricos de seu habitat, pois na estrada a frenagem com recuperação de energia quase não seria utilizada.
No entanto, foram garantidas condições iguais para os quatro veículos, permitindo a comparabilidade entre eles.
Todos os carros deveriam começar a maratona com 100% de bateria, então optamos por usar um ponto de recarga rápida da multinacional de energia ABB em São Paulo como ponto de partida e retorno da prova.
Como o objetivo é rodar com os veículos até ficarem sem energia, precisávamos de uma solução para movê-los caso o resgate não desse certo. Todas as opções envolviam geradores a gasolina.
A Honda cedeu o modelo EU10i (1,0 kVA). Na preparação, descobrimos que o aparelho não tinha capacidade suficiente para fazer a recarga dos veículos. Aí entrou em cena o maior EU20i (2,0 kVA), gentilmente cedido pela Honda Moto Remaza.
Só que, para recarregar um automóvel elétrico, não basta apenas uma fonte de energia. Os carregadores de emergência que vêm nesses veículos e são usados em tomadas de 110/220 V possuem um mecanismo para verificar o aterramento do conector.
Como os geradores não possuem isso, tivemos que ir atrás de uma barra de cobre, fios e conectores para fazer um aterramento improvisado caso fosse necessário usar o gerador durante o teste.
E, como se não bastasse precisar transportar um tubo maciço metálico de 2 metros, ainda era necessário carregar um tanque de gasolina para abastecer o gerador. Isso exigiu que convocássemos um grande carro de apoio, e o escolhido foi o Mercedes-Benz Sprinter 313 Furgão.
Apesar do tamanho, ele pode ser guiado por quem tem CNH de categoria B e não possui as restrições de circulação e velocidade de caminhões.
Estrutura montada, foi hora de definir a padronização do teste. Primeiro, optamos por um rodízio de motoristas entre os carros, para evitar que a forma de condução de cada um deles prejudicasse algum veículo.
Todos os recursos para aumentar a autonomia foram usados: modo Eco, regeneração de energia no modo intenso e limite de 100 km/h. O ar-condicionado automático, presente em todos os carros, foi mantido em 22 ºC.
Sofrimentos diversos
O objetivo inicial era partirmos de manhã, para pegar menos trânsito na saída de São Paulo. No entanto, um imprevisto logo no começo do teste atrasou a largada: um meio-fio pontiagudo próximo ao ponto de recarga cortou o pneu do Leaf.
Felizmente, a Nissan disponibilizou em poucas horas outra unidade, que foi devidamente calibrada e recarregada até 100%. Os primeiros 200 km transcorreram sem grandes percalços, mas cada carro gerava uma reclamação diferente.
Quem conduzia o I-Pace ficava frustrado por não poder pisar fundo e aproveitar os 400 cv do Jaguar.
Como o ar-condicionado tem sua potência reduzida no modo Eco, o calor também foi motivo de crítica no SUV. O retrovisor eletrônico do Bolt gerou alguns estranhamentos, mas o campeão de reclamações foi o Zoe.
O modo econômico de todos os carros torna o acelerador menos sensível e reduz a entrega de potência do motor. Mas, além disso, o Zoe também passa a ficar limitado a 95 km/h.
Por questões de segurança, quem conduzia o Renault podia desativar o modo Eco temporariamente, pisando fundo no acelerador para realizar ultrapassagens de caminhões e outros veículos mais lentos.
Mesmo assim, a letargia francesa incomodou.
Chegamos ao meio do teste, logo após Guaratinguetá (SP), com um balanço próximo ao dos números de fábrica: I-Pace e Bolt eram donos da maior autonomia, com Zoe e Leaf na lanterna. Como o Nissan seria o primeiro a ficar sem bateria, escalamos o editor-assistente Leonardo Felix para conduzir o hatch em seus quilômetros finais.
“Esperava que ele fosse perder potência gradualmente conforme a bateria se esgotasse, o que não ocorreu em nenhum momento”, conta Felix. Mas isso não impediu que o jornalista enfrentasse apuros.
“A carga chegou a 1% em um trecho da rodovia sem acostamento. Na hora fiquei preocupado com a chance de não ter um lugar seguro para recolher o Leaf.” Felizmente, a bateria se esgotou – após 248 km – em um trecho com faixa de domínio livre.
Por segurança, tanto o Leaf quanto os outros veículos foram sinalizados e ficaram em uma área gramada próxima à rodovia.
Como estávamos a 35 km do próximo ponto de recarga, tentamos usar o gerador para obter a carga necessária para percorrer esse trecho final. Montada toda a estrutura, porém, veio a frustração: o Leaf não detectava o aterramento e impedia a recarga.
A solução veio de um truque aprendido pela internet: como o Honda EU20i possui duas tomadas, é possível ligar o terra e o neutro de uma delas, fazendo com que o carro “pense” que o conector está aterrado.
Funcionou, mas mantivemos a barra de cobre conectada ao aparelho por segurança.
Só que todo o trabalho não adiantou nada: o computador de bordo do Leaf indicava que precisaríamos de seis horas para obter o alcance necessário.
Acionamos o resgate da CCR, concessionária da Via Dutra, enquanto o comboio seguia viagem.
Aí veio outra surpresa: o padrão para recolher um elétrico é igual ao de carros a combustão, e basicamente leva o automóvel só até o posto de combustível mais próximo – no nosso caso, 3 km à frente.
Segundo a concessionária, seu contrato com o governo exige um tempo máximo a atendimento ao usuário, e por isso ela não adota um procedimento específico para carros elétricos.
Como o Leaf ainda ficou a 32 km do ponto de recarga, ele precisou de mais de 5 horas no gerador. Isso exigiu 5 litros de gasolina, mostrando que esse dispositivo não é a melhor maneira para repor a energia do carro. Com ele, o “consumo” seria de altos 6,4 km/l.
Correção de trajetória
Com o gerador bloqueado pelo Leaf e sem poder contar com o resgate da CCR, alteramos os planos para os três carros restantes.
Como o Zoe tinha autonomia até o próximo ponto de recarga, cogitamos que ele fosse junto dos outros carros até o local e rodasse os quilômetros finais nos arredores do posto, em São José dos Campos (SP), para evitar sustos.
Nem precisou: o local é mal sinalizado e o trio elétrico se perdeu. A equipe só encontrou o ponto de reabastecimento quando o Renault tinha 2 km de autonomia — que acabou após duas voltas no longo quarteirão.
O Zoe apagou após 296 km e a algumas dezenas de metros do ponto de recarga, em uma ladeira. Com a ajuda da gravidade, levamos o carro até o recarregador.
Os imprevistos aumentaram a duração do teste de forma exponencial. Continuar a prova noite adentro era perigoso e desleal: baixas temperaturas reduzem a autonomia de veículos elétricos.
Optamos por guardar I-Pace e Bolt na Editora Abril, que na rota fica antes da ABB, e seguir com o teste no dia seguinte.
E nem esse trecho final ficou longe de emoções. A autonomia inicial do I-Pace na fase final era de 5 km, mas ao chegar ao destino, que estava a 3,4 km, o Jaguar indicou no painel que não tinha mais carga para ir adiante.
Até tentamos forçar a barra, mas mal havia energia para manobrar as 2,2 toneladas do SUV, e decretamos o fim do seu teste após 389 quilômetros.
O Bolt também indicava autonomia zerada, e foi o único a ter sua potência reduzida próximo do fim. Mas o Chevrolet sagrou-se campeão do desafio por conta de um problema técnico.
Uma falha no conector do modelo impediu que ele usasse o ponto de recarga da ABB. Levamos o carro até um prédio interno no complexo da empresa dotado de tomadas domésticas aterradas para usar o carregador de emergência – mas nem isso funcionou.
O Bolt precisou voltar de guincho para a GM, mas esse percurso extra na ABB fez com que ele pontuasse mais 1 km no hodômetro antes de ficar definitivamente sem bateria, superando o I-Pace.
O balanço final a favor do Bolt mostra que, dependendo do tipo de uso, o elétrico nem sempre terá o alcance divulgado pela marca.
Para quem roda muito tempo longe de uma tomada, a solução para esse problema e o range anxiety é uma só: planejar seus pontos de parada e acompanhar o tempo todo a autonomia. Ou levar um gerador no porta-malas.
A diferença das autonomias
Rodando até a bateria zerar, três carros chegaram próximo às marcas obtidas pelo ciclo WLTP, apesar de o consumo energético na estrada ser maior.
O Jaguar I-Pace, entretanto, decepcionou e foi superado pelo Chevrolet Bolt no último quilômetro. Todos eles rodaram juntos em comboio, combinando trânsito urbano (cerca de 11%) e rodoviário (89%).
Renault Zoe Intense
Com os reajustes de preço do JAC iEV 40, o Zoe passou a ser o elétrico mais barato do Brasil. Sua autonomia maior que a do Leaf se dá por conta do peso 100 kg mais leve.
A contrapartida é menos espaço interno. No dia a dia seu desempenho é adequado, mas o modo Eco reduz tanto a resposta do acelerador (e a velocidade máxima) que talvez não seja muito utilizado.
Recarregá-lo pode ser um problema, pois é o único a não oferecer carregador doméstico de fábrica, exigindo um aparelho vendido à parte.
Preço: R$ 149.990
Motor: dianteiro, transversal, 92 cv a 3.000 rpm, 22,9 mkgf a 250 rpm, tração dianteira
Bateria: 41 kWh
Suspensão: McPherson (dianteira)/eixo de torção (traseira)
Freios: disco ventilado (dianteira) e tambor (traseira)
Direção: elétrica, 10,6 m (diâmetro de giro)
Rodas e pneus: liga leve, 195/65 R16
Dimensões: comprimento, 408,4 cm; largura, 173 cm; altura, 156,2 cm; entre-eixos, 258,8 cm; altura livre do solo, 12 cm; peso, 1.480 kg; porta-malas, 388 l
Desempenho: aceleração: 0 a 100 km/h: 13,1 s, frenagem 80 km/h – 0: 26,5 m
Nissan Leaf
A segunda geração do Leaf ficou mais bonita e aposta em atrativos como o e-pedal. Esse modo de recuperação de energia é tão intenso que é possível dirigir usando somente o acelerador (o carro freia sozinho ao parar de acelerar).
Mas o recurso está longe de ser novidade, e é oferecido por todos os carros da reportagem. Só ele e o Jaguar oferecem modo de condução semiautônoma, com a vantagem de o Nissan ser R$ 242.000 mais barato.
Um adaptador compensa a raridade do tipo de seu plugue.
Preço: R$ 195.000
Motor: dianteiro, transversal, 149 cv a 9.795 rpm, 32,6 mkgf a 3.283 rpm, tração dianteira
Bateria: 40 kWh
Suspensão: McPherson (dianteira)/eixo de torção (traseira)
Freios: disco ventilado (dianteira) e sólido (traseira)
Direção: elétrica, 10,8 m (diâmetro. de giro)
Rodas e pneus: liga leve, 215/50 R17
Dimensões: comprimento, 448 cm; larg., 179 cm; altura, 156,5 cm; entre-eixos, 270 cm; altura livre do solo, 15,5 cm; peso, 1.582 kg; porta-malas, 435 l
Desempenho: aceleração 0 a 100 km/h: 8,8 s, frenagem 80 km/h – 0: 29,3 m
Jaguar I-Pace EV400 SE
É, de longe, o carro mais divertido de se dirigir, e já pode ser considerado um dos elétricos mais interessantes do mercado. Seus 400 cv e 71 mkgf catapultam o SUV até os 100 km/h em 4,8 segundos, segundo a fábrica.
Esse desempenho energizante exige baterias enormes, que demandam tempos de recarga elevadíssimos em tomadas de baixa tensão caso a carga fique muito baixa.
Preço: R$ 437.000
Motores: dianteiro e traseiro, transversais, 200 cv (rpm: n/d), 35,5 mkgf a 1 rpm, tração integral
Bateria: 90 kWh
Suspensão: duplo A (dianteira)/multibraço (traseira), molas pneumáticas
Freios: disco ventilado (dianteira/traseira) Direção: elétrica, 12 m (diâmetro de giro)
Rodas e pneus: liga leve, 255/60 R18 Dimensões: comprimento, 468,2 cm; largura, 201,1 cm; altura, 156,5 cm; entre-eixos, 299 cm; altura livre do solo, 14,2 cm; peso, 2.208 kg; porta-malas, 638 l
Desempenho: aceleração 0 a 100 km/h: 4,8 s (fábrica), frenagem 80 km/h – 0: n/d
*Recarregadores rápidos dessa potência são raros, e no Brasil os mais comuns chegam a somente 50 kW
Chevrolet Bolt Premier
Os primeiros Bolt importados dos EUA passaram por uma modificação nos conectores para o padrão europeu. Isso exigiu que seu software fosse trocado pelo do AmperaE, versão vendida pela Opel até 2017.
A GM nega que isso tenha relação com o problema enfrentado na recarga final, e alega que o veículo avaliado era um protótipo, e que ele entrou em um modo de segurança, impedindo a recarga.
Se os estimados R$ 175.000 prometidos em 2018 forem mantidos, seu custo/benefício será excelente.
Preço: R$ 175.000 (estimado)
Motor: dianteiro, transversal, 203 cv (rpm: n/d), 36,7 mkgf a (rpm: n/d), tração dianteira
Bateria: 60 kWh
Suspensão: McPherson (dianteira) / eixo de torção (traseira)
Freios: disco ventilado (dianteira) e sólido (traseira)
Direção: elétrica, 10,8 m (diâmetro de giro)
Rodas e pneus: liga leve, 215/50 R17
Dimensões: comprimento, 416,6 cm; largura, 176,5 cm; altura, 159,4 cm; entre-eixos, 260 cm; altura livre do solo, n/d cm; peso, 1.616 kg; porta-malas, 479 l
Desempenho: aceleração 0 a 100 km/h: 8,1 s, frenagem 80 km/h – 0: 26,9 m
Agradecimentos à Honda, ABB Brasil, Mercedes-Benz e Honda Moto Remaza: (11) 5090 2701