Com pai e mãe portugueses, em minha casa sempre havia uma garrafa de vinho do Porto, que era bebido em ocasiões especiais, pelos adultos, e como fortificante, junto com ovo e açúcar, por mim e meus irmãos, quando pegávamos resfriados.
Cresci ouvindo os adultos exaltando as qualidades do Porto. E me achando privilegiado por poder desfrutar daquele líquido tão precioso, até o dia em que minha mãe (dona Natália) disse que o Adriano (era assim, intimamente, que tratava o vinho da marca Adriano Ramos Pinto) era bom, mas que o melhor era o Florio. Eu era criança, devia ter 7, 8 anos, e essa revelação me fez sentir decepcionado por nunca ter experimentado a tal bebida, essa, sim, um elixir dos deuses, que eu pensava ser o melhor vinho do Porto de todos no planeta.
Depois de adulto, voltei a ouvir a palavra Florio quando me tornei jornalista automotivo. A Targa Florio foi uma das corridas de automóveis mais famosas do mundo, disputada na Itália, entre os anos de 1906 e 1977, contando com a participação de pilotos lendários como Stirling Moss e Tazio Nuvolari. O brasileiro Bird Clemente, morto no mês passado, foi convidado a correr nessa prova, mas não chegou a competir. E em carros igualmente memoráveis: Alfa Romeo, Bugatti, Ferrari, Mercedes e Porsche. Apesar de a competição ter exatamente o mesmo nome do vinho, essa coincidência nunca me trouxe lembrança alguma.
Um dia, passando em frente a uma loja de vinhos, de repente, avistei um rótulo F L O R I O. Foi uma daquelas experiências que duram breves instantes, mas nos absorvem com a força de um insight. Lembrei imediatamente das palavras da minha mãe. Entrei na loja e comprei logo duas garrafas, uma para mim e outra para ela. Ansioso para saber como a dona Natália reagiria diante daquela surpresa.
Para meu espanto, o Florio não era um Porto. Era vinho Marsala, italiano, que até aquele dia eu conhecia como sendo um dos ingredientes de sobremesas que eu tanto gosto, como tiramisu e zabaione. Quem diria, pensei: minha mãe era uma portuguesa ufanista que preferia o vinho italiano.
Com o tempo, porém, descobri que o Marsala e o Porto tinham muito em comum. Ambos são o que os especialistas chamam de vinhos fortificados (por conta do processo de produção que adiciona uma bebida destilada para interromper seu processo de fermentação). Nesse grupo se inclui também o espanhol Jerez.
O Marsala foi inventado em 1773 por um inglês (John Woodhouse), que viu no vinho que era produzido na cidade de Marsala, na Sicília, potencial para ter o mesmo sucesso que o Porto já fazia na Inglaterra. Muitas das caves portuguesas mais conhecidas, aliás, são controladas por empresas inglesas (Graham’s, Taylor’s, Sandeman). O Marsala conseguiu a aceitação esperada entre os ingleses, mas, ao contrário do Porto, continua sendo produzido por italianos, graças ao calabrês Vincenzo Florio, que iniciou o cultivo das uvas em 1833 e, anos depois, comprou a empresa criada por Woodhouse. Atualmente, as maiores produtoras de Marsala são Florio e Pellegrino.
Rico e poderoso, Vincenzo Florio era apaixonado por carros e competições, e foi ele quem criou a corrida que recebeu seu nome: Targa Florio. Targa, em italiano, é a placa do carro.
Bebida e direção não combinam, mas essa coincidência me fez lembrar da pista de Paul Ricard, na França, que foi construída, em 1969, pelo industrial francês Paul Louis Marius Ricard, criador da bebida Ricard, um licor de anis. Mas essa é outra história.
Por tradição familiar e prazer, hoje em dia, em minha casa, continuo tomando vinho do Porto, mas passei a acrescentar o Marsala à lista de compras, de preferência o Florio.
Paulo Campo Grande
Jornalista fala sobre diferentes assuntos, reflexões e memórias que considera interessantes de compartilhar com os leitores.