O teste de Impressões ao Dirigir do novo SUV elétrico da Kia, o EV9, publicado na edição passada, foi realizado no Deserto do Atacama, no Chile, lugar em que eu estive pela primeira vez em 1994, enviado para a cobertura do Camel Trophy – competição monomarca, promovida pela Land Rover e patrocinada pela R. J. Reynolds. Na ocasião, eu trabalhava no Jornal do Carro, do Jornal da Tarde, hoje Estadão.
Apesar de o deserto não ter mudado, me surpreendi com a transformação de sua cidade mais famosa, San Pedro de Atacama, localizada em um dos raros oasis da região. Em 1994, San Pedro de Atacama era um vilarejo, com casas construídas com argila, ruas sem asfalto e moradores que, assim que nós, jornalistas enviados para o Camel Trophy, chegamos, nos rodearam curiosos, nos fazendo sentir como extraterrestes desembarcando no deserto.
Hoje, 30 anos depois, San Pedro ainda tem ruas de terra e casas de argila. Mas o asfalto chega bem perto, há construções de alvenaria, e as moradias preservadas agora abrigam pequenos negócios como restaurantes (onde se ouve música andina com arranjos eletrônicos), agências de viagens e lojas diversas. Os habitantes não se surpreendem mais com os forasteiros. Quem aborda os visitantes atualmente são guias de turismo, que também falam português – vi um deles trajando a camisa do Flamengo.
De volta para casa, corri para a pasta em que guardo algumas reportagens antigas e ao ler a matéria do JC me surpreendi com a evolução que os carros tiveram de lá para cá.
Os Land Rover do Camel eram modelos Discovery, com o que havia de mais moderno na indústria, naquela época. Mas, olhando agora, vejo que eram basicamente os mesmos carros de sempre. Mudava o estilo, talvez algum recurso de segurança como a deformação programada da carroceria, em caso de choque. E só. Não havia eletrônica embarcada. Ainda não existiam os sistemas de injeção eletrônica para os motores a diesel. E os freios ABS, fabricados desde 1978, ainda não eram tão difundidos – principalmente entre os modelos que poderiam ser usados fora de estrada.
A maior sofisticação eletrônica dos veículos da prova estava a bordo dos carros de apoio, que eram modelos Defender 110, mas a tecnologia não surgia entre os componentes do carro e sim na bagagem. Alguns deles, não todos, receberam aparelhos de comunicação via satélite. Telefonia móvel era outra tecnologia que ainda estava em desenvolvimento. Não havia conectividade, Wi-Fi nem banda larga.
A cobertura do Camel Trophy foi minha última matéria no JC. Ela foi a capa da edição de 18 de maio de 1994. Logo depois, fui contratado pela QUATRO RODAS, na minha primeira passagem pela revista (essa história é longa).
A capa da QUATRO RODAS de maio de 1994 trazia o Fiat Tempra Turbo. A manchete dizia: “O mais veloz do Brasil: 212 km/h”. A principal novidade era a alimentação forçada pelo turbocompressor, um recurso que na época servia para melhorar o desempenho dos carros – e não o rendimento, como nos tempos de downsizing.
Equipado com turbina Garret T3, acompanhada de intercooler e radiador de óleo, o 2.0 de quatro cilindros do Tempra gerava até 165 cv, a mesma potência conseguida pelo 3.0 de seis cilindros do Chevrolet Omega, na época. Além da turbina, porém, havia outras mudanças, como a substituição do carburador Weber de corpo duplo pelo sistema de injeção eletrônica multipoint sequencial Bosh Motronic, com ignição mapeada.
Além das diferenças de San Pedro de Atacama e dos carros da época com os de hoje, a proposta das viagens também foram bastante diferentes. Em 1994, a Land Rover convidou os jornalistas a testemunhar a valentia de seus carros em situações adversas, passando por florestas, pântanos e desertos, com variação drástica de temperatura e altitude. A expedição percorreu 2.500 km, entre Saltos do Iguazu, na Argentina, e Antofagasta, no Chile, passando por Rosario, no Paraguai. Agora a Kia foi para o deserto para mostrar o quanto o EV9 é amigável ao meio ambiente, com seus motores elétricos e o uso de materiais recicláveis.
Na cobertura do Camel Trophy, segui o comboio na boleia de caminhão Ural 6×6, me alimentando de comida semipronta e tomando banho de mangueira. Lembro que no primeiro dia no deserto, assim que saltei do caminhão, meus pés mal tocaram o chão, alguém arremessou à queima-roupa um saco com uma barraca de camping dentro, que eu teria de montar, para passar a noite.
Desta vez, não. Chegamos a bordo de vans Kia Carnival, com ar-condicionado, lanchinho a bordo. As barracas, ou melhor tendas grandes e individuais que simulavam um quarto de hotel, já estavam armadas. Havia banheiros com água quente. E o café da manhã e as refeições eram preparados por profissionais, como em hotéis estrelados.
Fico imaginando como será um lançamento daqui a 30 anos (2054), no Deserto do Atacama: com hospedagem em um resort high-tech, avaliando um carro voador autônomo último tipo, movido a hidrogênio ou um outro combustível limpo.
Paulo Campo Grande
Jornalista fala sobre diferentes assuntos, reflexões e memórias que considera interessantes para compartilhar com os leitores.