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Volta às origens

Levamos um Jaguar 1950 para uma volta no antigo Circuito da Gávea. Entre prédios modernos, favelas e praias, ele conserva até hoje o charme do traçado original

Por Marcelo Cosentino
Atualizado em 9 nov 2016, 14h21 - Publicado em 26 fev 2015, 18h59
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    O som do seis-cilindros é ouvido a distância. Pedestres procuram de onde vem o ronco grave, mas o esbelto Jaguar XK120 demora alguns segundos para aparecer. Surpresos, nem imaginam que este é um retorno às origens. Estamos no traçado original do Circuito da Gávea, no Rio de Janeiro, o primeiro Grande Prêmio do Brasil (antes mesmo de existir a Fórmula 1), onde há 61 anos dois Jaguar como este competiram na última edição da prova. Realizada de 1933 a 1954, ela atraía pilotos estrangeiros e levava multidões a uma região despovoada da cidade para ver talentos como Juan Manuel Fangio e Chico Landi em uma corrida de rua que foi uma espécie de GP de Mônaco à carioca.

    Com 93 curvas, subidas e descidas, além de pisos variados (paralelepípedo, asfalto, brita e terra), esta era considerada por alguns pilotos uma das provas mais difíceis do mundo. Daí o apelido: Trampolim do Diabo. Décadas depois, é possível percorrer quase na totalidade os 11 160 metros do trajeto original – a única mudança está num quarteirão da Rua Marquês de São Vicente, na Gávea, que teve a mão invertida.

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    Convidamos para uma volta no circuito o engenheiro Roberto Dieckmann, que, além de pai da atriz Carolina Dieckmann, é dono do Jaguar XK120 ano 1950 na clássica cor British Racing Green. Esse ícone britânico do automobilismo era o carro de produção mais rápido de sua época: 213 km/h de máxima. Apesar de tanto desempenho, os dois exemplares da corrida de 1954 não tiveram muito sucesso: os franceses Henri Peigneaux, num roadster, e Danielle Foufounis, num cupê, não completaram a prova.

    O passeio começa na descida da Estrada da Gávea. Acelerando para valer, é impossível não pensar no heroísmo dos pilotos daquele tempo, que levavam no braço carros sem cinto de segurança e com pneus estreitos e freios a tambor nas quatro rodas, cujo fluido não raro entrava em ebulição.

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    Baratinhas a 200 km/h

    Logo alcançamos a Rua Marquês de São Vicente, de onde os carros partiam. Em meio a prédios modernos, o sobrado no número 215 (largada das provas de 1937 e 1938) e a casa no número 343 (largada de 1934) resistem bravamente ao tempo e à especulação imobiliária. Hoje a Gávea é um dos bairros mais valorizados da cidade. O XK120 entra no Leblon pela Avenida Visconde de Albuquerque. Com pouco mais de 1 km, esse era o trecho mais rápido da prova, onde as baratinhas chegavam aos 200 km/h sobre paralelepípedos. Foi no canal perto dali que aconteceu o acidente mais marcante: o piloto Irineu Corrêa, campeão de 1934 após largar em último com um Ford V8, morreu no ano seguinte ao derrapar e bater em uma árvore. A perda foi um baque para o automobilismo nacional.

    No fim do canal está o antigo Hotel Leblon, com sua fachada dos anos 20 preservada. Numa parada técnica, o Jaguar reúne curiosos e acaba saindo em algumas selfies. Antigamente, o hotel servia de camarote, além de funcionar como base para alguns pilotos. Na corrida de 1936, uma multidão foi dispersada por 1 600 policiais após tentar invadi-lo – o povo queria um lugar melhor para ver a prova.

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    No mesmo ano, a francesa Hellé Nice foi a primeira mulher a correr no Trampolim do Diabo, com um Alfa Romeo “Monza”. Também acrobata e dançarina de cassino, ela não chegou a completar a prova, mas já havia ganhado fama ao chocar os cariocas por usar biquíni de duas peças na Praia de Copacabana – hoje, os protestos por lá são para liberar o topless.

    No mirante do Leblon, onde agora há quiosques com mesas de plástico amarelas, antes havia uma pedra enorme que servia como arquibancada. Era um posto disputado para ver a prova, que na primeira edição reuniu estimadas 240 000 pessoas, quase o dobro do público dos três dias do GP Brasil de F-1. O vencedor da edição de 1933 foi o brasileiro Manuel de Teffé (neto do Barão de Teffé), ao volante de um Alfa Romeo. Até o presidente Getúlio Vargas, fã de automobilismo, estava lá para assistir à estreia.

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    Entre as pedras e o mar, o XK120 de suspensão dura quica no asfalto irregular da Niemeyer, onde os

    pilotos da época atingiam 150 km/h. Ao passar pelo Morro do Vidigal, crianças acenam e um motociclista chama Dieckmann de “presidente”. Mais à frente fica a Gruta da Imprensa, viaduto criado nos anos 20 na visita do rei Alberto, da Bélgica. Ali os jornalistas se reuniam para cobrir a competição. Foi ali perto que Chico Landi bateu seu Maserati contra a mureta após seu acelerador travar. Primeiro brasileiro a competir na Fórmula 1, Landi começou sua brilhante carreira no Circuito da Gávea em 1934. Ás do Trampolim do Diabo, ele foi o maior vencedor da competição: ganhou em 1941 (em segundo ficou seu irmão, Quirino Landi), 1947 e 1948.

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    No fim da Niemeyer, a vista da Pedra da Gávea e da Praia de São Conrado é igual à das fotos da época. Onde fica o Hotel Nacional, antes era uma bucólica lagoinha. Ali, nosso Jaguar pede arrego. Mesmo em um dia fresco para o verão local (30º C), Dieckmann teme que o esportivo ferva se encarar trânsito pesado. Natural, já que o inglês de 61 anos nasceu para acelerar nas pistas, não para ficar imóvel num congestionamento carioca. O roadster vai embora, então, de caminhão-prancha, e nós terminamos o trajeto num Renault Symbol. É hora de avançar pela comunidade da Rocinha, à época chamada de Serrinha. Na subida de 2 km de distância e 170 metros de altura, prédios de três andares, lojinhas populares e 70 000 moradores se amontoam onde antigamente era um loteamento. Ir rápido aqui é impossível, a não ser para os mototáxis, que tiram fino dos retrovisores.

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    Cotovelos, trampolins e uma ré

    Um dos locais mais desafiadores do circuito eram os cotovelos em Z nesta subida, chamados de trampolins, daí a origem do apelido da corrida. Com o ângulo muito fechado, os ônibus não conseguem fazer a curva na primeira tentativa. O jeito é dar ré e fechar a passagem nos dois sentidos. Começa o engarrafamento…

    Lá no alto, a bela vista da Praia de São Conrado é tapada pelos prédios. O piso de concreto parece o mesmo das fotos de 1937, ano que teve a prova mais emocionante. O alemão Hans Stuck chegou ao Brasil como favorito. Seu Auto Union de 16 cilindros e 550 cv era muito superior aos rivais, o que lhe rendeu o apelido de Flecha Diabólica. Mas na prova uma chuva fina fez com que seu carro perdesse tração. Quem brilhou, então, foi o italiano Carlo Pintacuda, que em um Alfa Romeo de “apenas” 360 cv chegou em primeiro, apenas 7 segundos à frente do barão. Com a vitória, “pintacuda” virou gíria para pessoa hábil no volante e até marchinha de Carnaval.

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    Na descida da Gávea, os casarões e a floresta voltam a fazer parte da paisagem. Fechamos os 11,1 km em 24 minutos em meio ao trânsito lento do século 21. Bem diferente do recorde da volta mais rápida: 7min03, proeza de Chico Landi, em 1951. No mesmo ano, Fangio correu na Gávea, mas abandonou por causa de um diferencial quebrado. No fim, a vitória ficou com outro argentino, José Froilán González. Coincidentemente, no mesmo ano González conquistaria a primeira vitória da Ferrari na F-1.

    Com o Rio crescendo a cada ano, o famoso traçado que serpenteava ao redor do Morro Dois Irmãos ficou obsoleto na década de 50. As corridas foram deixando as ruas e migraram para os autódromos. Assim, a prova do Circuito da Gávea saía de cena depois de 21 anos, mas não sem antes deixar plantada a semente do automobilismo nacional.

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    O TRAMPOLIM DO DIABO

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    – Extensão da pista: 11 160 m

    – Total de voltas: de 20 a 30

    – Realização: 1933 a 1954

    – Edições: 16 corridas em 21 anos (houve uma interrupção durante a Segunda Guerra Mundial)

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    – Recorde da pista: 7min03, por Chico Landi, em 1951

    – Maiores vencedores: Chico Landi (BRA), 1941, 1947, 1948; Carlo Pintacuda (ITA), 1937, 1938; Manuel de Teffé (BRA), 1933, 1939

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