O ingresso para visitar o Château Saint Jean, na cidade francesa de Molsheim, custa ao menos R$ 15 milhões. Esse é o valor aproximado de um Bugatti Chiron em sua configuração “básica” na Europa. A propriedade pertence à família cujo sobrenome remete ao que há de mais rápido e luxuoso entre os supercarros.
Cruzar seus portões como convidado é um privilégio restrito a proprietários de modelos da marca, o que transforma a visita em uma das experiências mais exclusivas do universo. Marcas como a Bugatti não medem esforços para fidelizar seus clientes.
“Muitos compradores adquirem certos carros pela exclusividade e status que podem trazer para eles. Além disso, como são apaixonados pelos seus automóveis, esses clientes querem sentir um pouco da história da marca e obter essa sensação de pertencimento”, diz Saulo Camelo, CEO da agência de marketing CMLO&CO.
No caso da Bugatti, proporcionar essa tal sensação de pertencimento inclui jantares e passeios a bordo de modelos históricos da marca, como o Type 51. O raríssimo – e gigantesco – Type 41 Royale Coupé também está por lá, exibido em uma garagem que permanece de pé desde o século 19, quando era um estábulo.
A propriedade foi adquirida pelo patriarca da empresa, Ettore Bugatti, em 1928. E, atualmente, os carros são construídos em um prédio no mesmo terreno, de 23 hectares, em uma linha de produção que ainda carrega o ar artesanal do início do século 20.
Além de ser morador, o criador da montadora já usava seu château para receber potenciais clientes e encantá-los. Era um ritual de aceitação, em que o convidado sentia a necessidade de se mostrar digno de possuir um dos carros da montadora. Ettore sabia das coisas, e pode ser considerado um precursor desse nicho de experiências que cativam clientes, além de aumentar o valor de mercado das marcas e de seus produtos.
A Ferrari entende bem essa lógica, e não por acaso sempre se destaca nas listas das mais valiosas do mundo. Ao mesmo tempo que oferece bibelôs licenciados de valor acessível – como relógios de maquinário simples, perfumes e camisetas –, proporciona atividades exclusivas para quem possui um de seus carros.
Uma das ações é o Programa XX, criado em 2005. A montadora italiana desenvolve carros de competição baseados em modelos de rua, que são usados por seus proprietários em circuitos definidos pela marca mundo afora. Esses esportivos, contudo, não ficam nas garagens dos donos.
A própria Ferrari guarda os carros em Fiorano, na Itália, e providencia o deslocamento para os autódromos nos períodos de evento. Os custos envolvidos são contados de milhão em milhão. Por exemplo: em 2017, a marca apresentou o FXX-K Evo, modelo de 1.050 cv que custava o equivalente a R$ 10 milhões na época.
O candidato a piloto que faz parte do Programa XX tem toda a estrutura da marca à disposição. Há uma equipe dedicada ao seu carro, com mecânicos uniformizados. Mas o ápice da exclusividade é a opção F1 Clienti, reservada a pouquíssimos proprietários de outros modelos da fabricante. Aí não basta ter dinheiro: é preciso ter prestígio junto à turma de Maranello.
A esse seleto grupo é aberta a possibilidade de adquirir um dos monopostos da Fórmula 1 usados em temporadas passadas. É possível encontrar em um mesmo evento a Ferrari 412 T2 do campeonato de 1995 e a SF71H de 2018, além de alguns dos bólidos que fizeram parte da história de Michael Schumacher na escuderia.
O momento da compra de um supercarro zero-quilômetro também precisa ser especial. A Lamborghini criou o programa La Prima, que traz pompa e circunstância ao que seria apenas uma entrega técnica.
Quem adquire os modelos da marca pode receber o automóvel na sede da montadora italiana, em Sant’Agata Bolognese.
“A jornada começa com um mergulho profundo no mundo da Lamborghini, começando com uma visita VIP à fábrica e culminando com a apresentação do novo Aventador, do Huracán ou do Urus ao seu proprietário. É o início de um caso de amor ao longo da vida”, diz o texto de apresentação do programa.
Além da entrega personalizada, o cliente pode escolher um dos 16 roteiros de luxo propostos pela fabricante, que incluem belas estradas europeias, restaurantes e hospedagens. Trata-se de uma chance de conhecer melhor o carro novo, mas também é possível optar por um outro modelo que esteja disponível para o tour. Vai que o milionário se anima e adquire mais um?
Na Rolls-Royce, o foco está na personalização. O comprador tem à disposição o Private Office, sendo possível escolher cada detalhe do carro diretamente em Goodwood, sede da marca inglesa.
O ar austero do lugar é comparado a um tradicional “gentleman’s club” britânico. Quem viu alguns episódios da série The Crown (Netflix) vai se familiarizar com o ambiente.
É nesse clima de alto luxo e exclusividade que artesãos da marca recebem os clientes – um por vez. Os detalhes são definidos com paciência, e não há limites para diferenciar um modelo feito sob medida dos demais. No fim do processo, o projeto é gravado em um cartão e trancado no cofre da empresa. Dessa forma não será replicado, nem esquecido.
A Porsche, por sua vez, busca conciliar experiências de pista e de luxo em seus programas voltados para clientes. Entre as atividades está a Track & Racing Experience, que é um dos cursos de direção mais exclusivos do mundo. Há diferentes níveis de treinamento, sendo até possível obter a licença de piloto.
Já o Porsche Golf Circle reúne clientes em torno de um esporte elitizado, mas bem diferente de qualquer coisa que envolve um motor – exceto, é claro, os carrinhos elétricos que transportam os jogadores pelo campo.
Reunir consumidores em torno do golfe foi algo natural para a marca alemã, que promove torneios profissionais desde os anos 1980.
O Porsche Golf Circle tem um aplicativo dedicado aos proprietários que gostam de dar suas tacadas. A tecnologia permite acesso ao calendário de eventos e ajuda a reunir jogadores amadores que são fãs da marca. É um bom motivo para colocar os carros na estrada, se hospedar em hotéis luxuosos e desfrutar do melhor da culinária internacional. Falando assim parece propaganda de agência de turismo VIP, mas é disso que se trata: vender sonhos e vida boa.
Talvez “vender” não seja a melhor palavra. O objetivo das montadoras que atuam no segmento superpremium é oferecer experiências exclusivas a ponto de carregar uma certa magia, como se fossem algo que o dinheiro não pudesse comprar.
O administrador e consultor Gilmar Pinto Caldeira é especializado nesses tipos de atividades, definidas como viagens de incentivo. “São uma ferramenta de marketing orientada para funcionários, parceiros e consumidores, e o conceito é esse mesmo: experiências que o dinheiro não pode comprar.”
O consultor explica que empresas do setor automotivo se utilizam de viagens de incentivo desde o início do século 20, e as ações não se restringem às marcas de modelos mais caros. Por vezes o trabalho é voltado apenas para os próprios funcionários. “O objetivo é a fidelização das revendas e de suas equipes, pelo simples fato de que você só consegue fidelizar clientes se fidelizar seu time”, afirma.