Há nove anos, cerca de 50.000 pessoas lotaram orgulhosas o Continente Shopping, em São José, na Grande Florianópolis (SC), para a inauguração do novo centro de compras. Nessa época, a região crescia como nunca e o Continente, que se tornaria referência comercial na região, foi construído em poucos meses, representando um marco desse crescimento.
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O sucesso foi imediato, mas a pressa na construção da obra contribuiu para que o trecho da rodovia que passa no local onde o shopping foi instalado se tornasse o mais perigoso de todos nas estradas federais existentes no Brasil, segundo apurou QUATRO RODAS.
Em 2020, só nos 4 quilômetros próximos ao Shopping, ocorreram 228 acidentes. A sucessão de erros no planejamento urbano, porém, se repete em toda a Grande Florianópolis, que acumula sete dos dez trechos mais perigosos das BR brasileiras.
Em seu site na web, o Continente informa sua localização na “esquina da BR-101 com a SC-281” tal como duas ruas comuns. À época, seus construtores anunciaram uma nova via marginal para dar conta do tráfego intenso, mas nada além do acesso ao shopping foi feito. “Qual é o tipo de obra mitigadora que o shopping fez? Mínima”, diz o engenheiro Cesar Sass, diretor de operações da Arteris, concessionária da rodovia naquele trecho. Segundo Sass, o cenário é crítico.
Sem adequações, a BR-101 se transformou aos poucos em uma avenida, que recebe o movimento local juntamente com o tráfego de quem viaja pela estrada nos dois sentidos, de Norte a Sul e vice-versa.
Erros sistêmicos
Ainda que toda grande cidade brasileira seja cruzada por rodovias, no caso de Florianópolis e suas vizinhas como São José e Palhoça, faltam acessos adequados e contrapartidas por parte de novos empreendimentos.
O engenheiro da Arteris faz questão de ressaltar outros exemplos ao longo da rodovia, como o de um condomínio fechado que, ao criar um lago artificial, causou entupimento da drenagem da pista a quilômetros de distância, contra o qual, pelo fato de estar fora da jurisprudência da concessionária, ela nada pôde fazer.
Outro caso fica em Itapema, no litoral norte de Santa Catarina, onde cinco torres residenciais foram construídas em uma rua que fica a cerca de 10 metros da rodovia. Desse modo, por mais que seja obrigatório o uso da estrada para chegar aos prédios, as obras de acesso foram feitas apenas segundo normas municipais, de acordo com Sass, sem considerar a situação específica de uma rodovia, que é uma das maiores do Brasil, como vizinha. Não surpreende, portanto, que os pontos críticos da BR-101 prossigam até a divisa com o Paraná.
A situação é tão desesperadora que, em 2014, moradores da região liderados pelo policial militar aposentado Jorge André de Oliveira criaram um grupo dedicado a reportar acidentes e auxiliar o resgate por parte da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e dos serviços médicos.
Com site e perfis nas mídias sociais, o Pista Limpa tornou-se referência para a população, quando alguém quer saber notícias sobre as condições do trânsito na Grande Florianópolis ou mesmo no estado de Santa Catarina. Por várias vezes, durante esta reportagem, as conversas com Oliveira foram interrompidas por chamados de socorro. “É complicada minha situação aqui”, disse o ex-policial se referindo a sua rotina diária exaustiva.
Em Palhoça, um enorme armazém atacadista foi erguido às margens da BR-101 sem nenhum acesso adequado. Ano passado, a polícia registrou 58 acidentes (mais de um por semana), em frente ao estabelecimento – tornando esse trecho o terceiro mais perigoso do Brasil.
Com o crescimento populacional muito além da média brasileira, a Grande Florianópolis vem há anos tentando lidar com o inchaço urbano. O relatório mais recente da Rede de Monitoramento Cidadão local – que reúne governos, empresários e estudiosos – aponta problemas sistemáticos como ausência de planos para organizar o tráfego metropolitano, baixa adoção do transporte público e excesso de veículos per capita. A alta taxa de mortalidade no trânsito da região chega a 20 vítimas por 100.000 habitantes/ano, segundo esse relatório.
Direitos e deveres
O trecho catarinense da BR-101 operado pela Arteris registrou, em 2020, mais de 2.100 acidentes. Ao todo, foram 64 mortos, 2.348 feridos e 3.849 veículos envolvidos, sem considerar vias de acesso ou de saída.
Diante desse cenário sem precedentes, a companhia tem pressa em concluir o tão sonhado contorno viário que desviará o tráfego da região crítica da Grande Florianópolis.
A obra estava prevista para ser concluída em 2012, mas o atraso deverá chegar a uma década. Entre denúncias de irregularidades, burocracia nos procedimentos e protestos, a Arteris cita, mais uma vez, o crescimento desordenado como entrave.
Segundo Cesar Sass, enquanto o plano caminhava a passos lentos, bairros residenciais e industriais foram surgindo onde seria feita a estrada obrigando os responsáveis a alterar o projeto. “Foram mais de mil desapropriações para a construção do contorno”, afirma.
O primeiro trecho do contorno, entre as cidades de Biguaçu e São José, está previsto para ser concluído até o fim deste ano. A obra toda deve ser entregue até 2023. Além disso, até maio a concessionária deve iniciar a construção da terceira faixa da BR-101 até Biguaçu, sob pena de multa em caso de descumprimento.
Orgulhosas de receberem imigrantes atraídos pela qualidade de vida acima da média do país, Florianópolis e suas vizinhas aceleram para que o sangue das estradas não suje a fama de paraíso.
Por mais que o distanciamento social provocado pela pandemia do coronavírus tenha contribuído para reduzir os acidentes de trânsito, ainda assim, cerca de 80 pessoas morreram por dia em ocorrências em nosso sistema viário, em 2020.
Isso sem falar nas vítimas que precisaram de socorro médico, sobrecarregando ainda mais o sistema de saúde, com risco de o acidentado contrair a Covid-19, durante o atendimento.
Segundo dados da PRF, só nas rodovias federais foram 64.000 acidentes no último ano. No topo da lista dos trechos mais perigosos do país, Santa Catarina tem um destaque assustador, ocupando oito posições ainda que com seus 7.252.502 habitantes, o estado responda por apenas 3,4% da população brasileira.
Todos os primeiros colocados da lista têm em comum a receita fatal que mistura, sem a devida adequação, trânsito urbano e rodoviário.
Como signatário de acordos internacionais para a redução de mortes no trânsito, o Brasil tem feito um bom trabalho quando o alvo do problema são os motoristas. O exemplo disso é que, nos últimos anos, o país conseguiu reduzir o número de acidentes por excesso de velocidade e ocasionados por motoristas que bebem e depois dirigem. Mas, por outro lado, o país negligencia o assunto no que diz respeito às ruas e estradas, mal planejadas e mal conservadas, e aos veículos, com legislações brandas.
Este ano, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran), órgão vinculado ao Ministério da Infraestrutura, adiou o prazo para a obrigatoriedade de itens de segurança importantes, como o controle eletrônico de estabilidade para todos os modelos vendidos no Brasil (sistema que existe na Europa desde os anos 1990), de 2022 para 2024, atendendo a um pedido das fábricas de automóveis, que alegaram dificuldades advindas da pandemia.
Trechos por quilômetro com mais acidentes nas rodovias federais brasileiras em 2020:
Posição | BR | Km | Cidade | Estado | Total de acidentes |
1º | 101 | 208 | São José | SC | 65 |
2º | 101 | 210 | São José | SC | 62 |
3º | 101 | 213 | Palhoça | SC | 58 |
4º | 116 | 219 | Guarulhos | SP | 52 |
5º | 101 | 214 | Palhoça | SC | 52 |
6º | 101 | 209 | São José | SC | 51 |
7º | 101 | 207 | São José | SC | 50 |
8º | 101 | 216 | Palhoça | SC | 47 |
9º | 101 | 270 | Serra | ES | 42 |
10º | 101 | 134 | Balneário Camboriú | SC | 36 |
Fonte: Polícia Rodoviária Federal
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