Os bastidores e curiosidades da chegada da Fiat ao Brasil
Da ideia da fábrica ao carro pronto, os bastidores da complexa operação de produzir automóveis no país
Nos anos 50, quando optou pela Argentina em vez de fincar raízes no Brasil, a Fiat perdeu o bonde da história – a criação do GEIA. Em março de 1973, no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, quando anunciaram a construção de sua fábrica, os italianos sabiam que teriam pela frente Volkswagen, Ford e General Motors, íntimas dos consumidores e com investimentos já amortizados.
Mas muitos erros, acertos, momentos de sorte e de dúvida viriam até setembro de 1976, quando foi lançado o Fiat 147. E dão uma boa idéia da complexidade de se implantar uma fábrica de carros.
A começar pela escolha do local. O impulso óbvio era ir para o ABC, em São Paulo, que abrigava 11 das 12 fabricantes de carros e 90% da indústria de autopeças. Além disso, a 70 quilômetros da capital paulista está o porto de Santos, fundamental para escoar a produção.
Mas Minas não foi escolhida por acaso. Na década de 60, os italianos já haviam vencido uma concorrência para fornecer tratores ao governo estadual. Naquela época, o governador Rondon Pacheco iniciou as primeiras negociações com a Fiat, em Turim. O namoro resultou na assinatura do acordo de Comunhão de Interesses.
“Um fator determinante foi a parceria com o estado, que entrou com pouco mais de 40% de participação no empreendimento. São Paulo e Paraná ofereceram incentivos fiscais, mas não acenaram com tal proposta de sociedade. E havia a política de descentralização econômica do governo federal”, afirma Jack Corrêa, responsável pelo setor de relações públicas da Fiat de 1975 a 1979.
Pelo terreno de 2,25 milhões de metros quadrados foi pago um preço simbólico à prefeitura de Betim. O governo estadual arcou com toda a infra-estrutura: estradas externas, via de acesso à rodovia São Paulo–Belo Horizonte, energia elétrica, água e telefonia.
“Não sei avaliar quanto, mas se a fábrica tivesse sido erguida em São Paulo, sairia muito mais caro”, diz Adolfo Neves Martins da Costa, o primeiro comandante da Fiat no Brasil (1973 a 1979), que coordenou a construção.
Na época, Betim tinha menos de 40.000 habitantes e 64% deles viviam na zona rural. Hoje são 400.000 pessoas, a cidade recolhe 4 bilhões de reais em tributos e há 33 empresas de autopeças – quatro do Grupo Fiat.
Da terraplanagem, iniciada em 1974, à inauguração foram dois anos, feito possível devido a uma decisão estratégica, não aprovada plenamente pela Itália. “Dividimos o trabalho com várias pequenas e médias construtoras, que se mostraram muito competentes. Isso evitou que ficássemos reféns de duas ou três grandes empreiteiras. Além disso, todas estavam engajadas no projeto. Reduzimos custos e a obra foi entregue antes do previsto, o que surpreendeu a matriz”, recorda Adolfo Neves da Costa.
Mas surgiram problemas que não estavam no script. O Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças), por reserva de mercado, era contra a instalação da Fiat em Minas. “Houve quem dissesse que ela não sobreviveria fora de São Paulo. Esse era um fantasma que nos assombrava na época da construção e até depois de iniciada a operação”, reconhece Adolfo.
E a empresa pagou caro por ficar longe do coração da indústria automobilística. Devido a distância dos fornecedores de peças, era obrigada a manter grandes estoques. Essa dificuldade logística só começaria a ser sanada a partir de 1987, com o chamado processo de “mineirização”, implementado pelo então diretor de compras, Cledovirno Belini, hoje superintendente da Fiat Auto para a América Latina e presidente daFiat do Brasil. Atualmente, 70% das autopeças e matérias-primas usadas pela Fiat Automóveis vêm de empresas sediadas em Minas.
Diferentemente das demais companhias, que usavam o porto de Santos, a Fiat optou pelo terminal do Rio de Janeiro, mais perto (480 quilômetros contra 680) e que ofereceu melhores condições de operação. Como precisava produzir 200.000 veículos por ano, número que o mercado interno não absorvia, a saída foi exportar.
Também era preciso mão-de-obra especializada, que não havia em Minas. O jeito foi qualificar o pessoal. Dos 9000 empregados iniciais, boa parte foi treinada nas fábricas da Argentina e da Itália. Segundo Jack Corrêa, os brasileiros que foram para Turim tiveram desempenho muito bom, aprendendo mais rápido que profissionais de outros países – a Fiat tinha acabado de abrir uma fábrica na Polônia.
Foram trabalhar em Betim pessoas do Brasil inteiro. A preferência era para quem tivesse curso técnico. Como muitos eram de fora, centenas de ônibus levavam e traziam os funcionários. “Alguns dias, a fábrica parecia uma rodoviária”, conta Jack Corrêa.
Quem se recorda bem desse tempo é Francisco Gonçalves Martins da Silva, que começou na empresa aos 16 anos, em 1976, como office-boy. Ele trabalhava num hotel na capital, onde se hospedavam os italianos que vinham a Minas negociar a construção da fábrica. Até que um deles o chamou para trabalhar em Betim.
“O lugar onde fica a empresa era uma fazenda esburacada, numa área cheia de morros. No começo, trabalhávamos num prédio de 14 andares no centro de Belo Horizonte. Ali funcionavam os escritórios. Eu ia à fábrica quase todos os dias, passando pela rodovia Fernão Dias, que era muito perigosa, estreita, de mão dupla e cheia de mato ao redor”, lembra Chico. Os primeiros carros da frota, aliás, foram dez Corcel, da Ford, alugados de uma modesta empresa que começava naquele época, a Localiza.
Resistência para peitar o Fusca
Implantação da fábrica em andamento, a direção da Fiat precisava definir que modelo produziria. E tome pesquisas de mercado. Foram elas que indicaram que nosso mercado carecia de um carro moderno, de perfil familiar, ágil no trânsito urbano e, principalmente, econômico. Peitar o Fusca, que reinava nas ruas do país, era difícil, mas os estudos mostraram que os brasileiros já o consideravam defasado.
A solução foi partir do 127 italiano, sucesso desde 1971 e carro mais vendido da Europa em 1975, e criar um automóvel adequado às necessidades nacionais. “No início era muito difícil, pois não podíamos contar com a fábrica, que ainda estava nos alicerces. Trouxemos de Turim todo o ferramental, mas qualquer problema mais grave tinha de ser resolvido na Itália. Em 1974, importamos de lá algumas unidades dos modelos 126 e 127. Este último revelou ter as dimensões mais adequadas e, a partir dele, fomos fazendo as alterações”, conta o engenheiro italiano Appio Aguiare, que trabalhou desde o início no projeto do 147.
Os Fiat 127 foram submetidos a condições adversas, encarando o calor tropical, lama, terra e estradas esburacadas. “Precisaríamos de um carro mais resistente. O 127 não sobreviveria aqui. Nossa primeira preocupação foi desenvolver outro sistema de suspensão”, explica Appio.
O motor também foi alterado. O 147 recebeu propulsor a gasolina de 57 cavalos e 1.049 cm3. “As condições topográficas daqui exigiriam mais potência e torque para o carro subir morros e ladeiras e ser mais ágil no trânsito”, diz Appio. Diferentemente do Fusca, o motor era refrigerado a água, tinha comando de válvulas no cabeçote e era montado na transversal – uma inovação e tanto para o mercado brasileiro, que permitia ganho de espaço.
Após as “surras”, os 127 voltavam à Itália, onde eram desmontados e avaliados, como ocorria com os primeiros protótipos do 147, que rodaram cerca de 1 milhão de quilômetros Brasil afora. “Rodamos principalmente na Bahia, para avaliar o carro sob forte calor; em São Paulo, onde o trânsito já era intenso e pesado; e em Minas, por sua grande malha viária, mas com muitas estradas de terra”, explica o argentino Enrique Floreano, que trabalhou na Fiat de 1974 a 1998 – depois virou consultor.
“Nosso ponto de referência era o Fusca, apesar das diferenças de concepção”, admite Appio, que rodou com muitos VW na fase de criação do 147. “Os pontos fortes do Fusca eram a robustez, a mecânica fácil e confiável e o projeto simples. Mas o 147 era mais espaçoso e econômico.”
As adversidades encontradas na época não mudaram tanto: gasolina ruim, buracos, lombadas e quebra-molas por todos os lados e estradas mal conservadas. “Pelo menos hoje existe mais asfalto”, ironiza Appio. Ele lembra que perdeu muitas noites de sono por causa da poeira: “Não estávamos acostumados com isso na Europa. Ficamos assustados. Como havia muitas estradas não pavimentadas, a poeira entrava nos carros e tomava conta do motor e do interior. Fomos obrigados a retrabalhar toda a vedação”. Os engenheiros também tiveram que reforçar pontos de fixação interna e usar mais materiais isolantes, para evitar trepidação de painel e forros de portas.
Os pneus também exigiram atenção especial. A matriz queria usar os 135/70 R13, mais finos, mas foi convencida de que seria um erro. E o 147 foi o segundo carro fabricado no Brasil com pneus radiais – o primeiro foi o FNM 2000. E como o objetivo era um veículo espaçoso, o estepe ficou no compartimento do motor (como no italiano 127), liberando mais espaço para a bagagem.
Trabalho em conjunto
Lançar o 147 no mercado exigiu esforço conjunto dos departamentos de engenharia, comercial e marketing. O jornalista Lindolfo Paoliello foi o primeiro homem de imprensa da Fiat no Brasil, assumindo em maio de 1976. “Faltando pouco para a inauguração da fábrica, o então presidente da Fiat, Giovanni Agnelli, me chamou e disse: ‘Será no dia 9 de julho. Você vai me dizer o horário da solenidade, pois sabe que horas é melhor para a imprensa’.”
Lindolfo optou pela manhã e coube a ele receber cerca de 500 jornalistas de todo o Brasil e também do exterior. “Entre maio e junho, antes da inauguração, além de organizar a cerimônia oficial, atendi à imprensa do mundo inteiro, tudo na base do telex”, conta. Segundo ele, os jornalistas paulistas foram os que deram mais trabalho, pois alguns aderiramao movimento liderado pelo Sindipeças contra a instalação da Fiat em Minas.
Nas semanas que antecederam a inauguração, uma saia-justa: “Era o auge da ditadura e tivemos que apresentar a lista de convidados à segurança do presidente (Ernesto) Geisel, que não hesitou em cortar vários nomes”, diz Lindolfo. “Na reta final, trabalhávamos 15 horas por dia. Quando Geisel apertou um botão, ativou a prensa e a sirene tocou, foi uma descarga coletiva de adrenalina.”
Mas o perigo morava nos detalhes. A poucos dias da solenidade, o cerimonial da Fiat constatou que era preciso melhorar o visual da fábrica. Tudo era asfaltado, mas havia muita poeira e faltava verde. “A dois dias da inauguração, plantamos um tipo de grama que, diziam, crescia em 48 horas. Para nossa surpresa, ficou tudo verdinho, lindo! Mal acreditamos”, recorda com bom humor Jack Corrêa.
O próximo desafio era a estratégia de lançamento do 147, que precisava ser impactante. O veículo foi apresentado à imprensa em Ouro Preto, em setembro – com a participação de Emerson Fittipaldi –, e ao público no Salão do Automóvel de São Paulo, em outubro. “O objetivo era explorar a mineiridade da fábrica sem ser bairrista. Por isso, escolhemos Ouro Preto, que tem a cara de Minas, mas é um patrimônio da humanidade”, conta Lindolfo.
Em 1975 e 1976, pesquisas indicaram à Fiat que era preciso fortalecer ainda mais a imagem, sobretudo com o público jovem. “Outra preocupação era mostrar que os italianos tinham vindo para ficar e não eram meros aventureiros”, afirma Waldomiro Carvas Júnior, que atuou no marketing da empresa de 1976 a 1985. “Na época, o departamento ficava no Edifício Itália, em São Paulo, por causa da proximidade do mercado publicitário.”
Por isso, uma agressiva campanha publicitária buscava mostrar a valentia do carro. Numa das peças, o pequeno 147 desce as escadarias da Igreja de Nossa Senhora da Penha, no Rio de Janeiro.
Em outra, o carro atravessa os 14 quilômetros da Ponte Rio–Niterói com menos de 1 litro de gasolina no tanque. “Só conseguimos graças à boa vontade da Polícia Rodoviária Federal, que autorizou a interrupção do trânsito”, relembra Enrique Floreano.
Mais um desafio superado pelo 147, que começava a escrever a história da Fiat em nosso mercado.
* No dia 9 de julho de 2021, a Fiat completou 45 anos de atividades no Brasil. Esta reportagem, que conta a história da chegada dos italianos ao país, foi publicada originalmente em setembro de 2006.