Exatos cinco meses atrás, QUATRO RODAS já havia apurado com fontes brasileiras que o grupo FCA poderia ser negociado com grupos chineses. Nesta semana, após a revelação pelo site Automotive News, que ao menos duas fabricantes chinesas estão realmente interessadas em comprar a FCA, o mercado financeiro borbulhou com especulações e análises sobre o impacto que essa aquisição provocaria nos principais países onde as marcas atuam.
Os especuladores também aproveitaram o momento, provocando uma alta acima dos 10% nas ações da FCA na bolsa de valores de Nova York. Todos os lados do rumor negam qualquer interesse, mas especialistas já debatem os impactos negativos e positivos – inclusive no Brasil – que essa compra teria no setor automotivo.
Não é segredo que Sergio Marchionne, CEO da FCA (Fiat, Chrysler, Dodge, Jeep, RAM, Alfa Romeo, Lancia e Maserati, entre outras marcas), deseja unir forças com outra grande fabricante para permitir uma redução de custos por meio do aumento da escala de produção. O executivo já havia sondado a GM e Volkswagen, mas ambas as gigantes não se interessaram em parcerias.
A alternativa foi se voltar para a Ásia, mas Marchionne encontrou um entrave: as empresas chinesas não querem mais parcerias com grupos ocidentais. Agora elas querem comprá-las.
O momento vai ao encontro da política de expansão das companhias chinesas promovida pelo governo local. Por meio de empréstimos e incentivos, o Estado chinês estimula a ofensiva dos grupos locais e já começa a colecionar frutos. Além da compra da Volvo e da Lotus pela Geely, a italiana Pirelli já passou para as mãos chinesas. Mas os EUA, segundo maior mercado do mundo (atrás apenas da própria China) ainda segue quase intocado – e é aí que entra a FCA.
Só na América do Norte a FCA tem 2.600 concessionários. Globalmente os números são ainda mais impressionantes, com 162 fábricas, 87 centros de pesquisa e desenvolvimento e mais de 231 mil funcionários. Pelas estimativas do mercado, o valor total da FCA supera os US$ 20 bilhões (mais de R$ 63 bilhões, pela cotação do dia 16/08/2017).
Apesar de uma das investidas chinesas ter sido recusada por não ter oferecer um valor alto o bastante, o dinheiro não é um empecilho para os chineses comprarem a gigante ítalo-americana. Mas pode haver entraves legais.
Tecnologia longe dos inimigos
Em 1950 o governo dos EUA criou o Comitê para Investimentos Estrangeiros nos Estados Unidos (CFIUS, na sigla em inglês). O objetivo do órgão é analisar e, se necessário, barrar parcerias e compras de empresas norte-americanas por empresas estrangeiras. Isso é feito sempre que o governo crê que existe algum risco de tecnologias ou da capacidade da industrial do país cair nas mãos inimigas.
É verdade que a Chrysler já passou pelas mãos dos alemães e agora se juntou aos italianos. Mas os europeus são aliados econômicos, ideológicos e militares dos EUA. O mesmo não se pode dizer da China, tratada mais como rival – apesar das enormes relações comerciais.
Dentro do contexto asiático, China e EUA divergem em uma série de questões, como a situação de Taiwan, a Coréia do Norte, a rivalidade histórica com o Japão e diversas contestações territoriais pelo Mar da China. Por isso, uma eventual aquisição da FCA certamente seria analisada com muito cuidado pelo CFIUS (e o governo Trump) antes que qualquer documento pudesse ser assinado na América do Norte.
Outro efeito colateral da aquisição atingiria diretamente os entusiastas. Na maior parte dos rumores é dado como certo que a aquisição da FCA não incluiria as marcas Maserati, Alfa Romeo e Lancia. Vale lembrar que, desde o ano passado, a Ferrari já não faz mais parte das empresas controladas pelo grupo.
Sem a força (e os investimentos) da até então sétima maior fabricante de carros do mundo, o trio italiano pode encolher ainda mais de tamanho ou até sucumbir. Atualmente a Alfa Romeo conta com só dois modelos atuais – o Stelvio e o Giulia – e o catálogo da Lancia é composto apenas pelo Ypsilon, uma versão refinada do Fiat 500.
Do lado de quem fica, as perspectivas são mais animadoras. Apesar da força na América do Norte, no Brasil e na Itália, as marcas da FCA não possuem grande representatividade em outros países da Europa e da Ásia. O investimento chinês poderia dar um providencial empurrão – foi o caso da Volvo, hoje envolvida em um intenso processo de transformação e modernização iniciado após a compra pela Geely.
No Brasil os efeitos de uma FCA chinesa não seriam notados a curto prazo. O braço Jeep segue firme com o ótimo desempenho de Renegade e Compass, e certamente os chineses não mudariam um time que está ganhando. Do lado Fiat, apesar do sucesso da Toro, a marca perdeu participação no mercado abaixo de R$ 100 mil, e os frutos do projeto X6H e X6S (Argo hatch e sedã, respectivamente) ainda podem demorar a aparecer.
É neste segmento que os chineses poderiam mudar o jogo. Chery, JAC e Lifan já provaram que conseguem fazer produtos de baixo custo com qualidade e design próximos aos de modelos consolidados, mas ainda sofrem com o preconceito do mercado e com as regras de importação.
A absorção da Fiat daria aos chineses acesso a uma enorme estrutura de produção e comercialização no país, além de bilhões de dólares em investimentos para impulsionar a ex-líder do mercado brasileiro.
Os chineses (e indianos) também já deram provas de que não são loucos a ponto de mexer na identidade, qualidade e status de marcas que passaram para seu controle – como a já citada Volvo e a Jaguar/Land Rover. Não espere, portanto, um downgrade nos produtos da FCA.
Única dúvida
O diretor executivo da Geely já declarou esta semana que a empresa não tem interesse em adquirir a FCA – apesar de comitês de ambas as empresas terem sido vistos nos Estados Unidos e China. Declaradamente interessado em aumentar o tamanho da FCA, Marchionne tem na Ásia sua maior – e talvez única – chance de transformar seu grupo em uma gigante capaz de brigar pelo posto mais alto.
Com esse cenário, a questão que se avizinha no mercado não é se um dia a FCA será comprada por chineses – e sim quando. Mas, considerando os valores dessa aquisição histórica, a confirmação das especulações só irá ocorrer quando o cheque for assinado definitivamente.