O compartilhamento de componentes é um grande aliado na redução de custos. As fábricas usam esse recurso o quanto podem, inclusive entre modelos de marcas diferentes, quando se trata de empresa que reúne várias.
Pelo lado econômico, isso é vantajoso. Porém, principalmente para uma marca de luxo, é difícil explicar aos clientes as semelhanças de seus carros com outros mais simples. Essas semelhanças podem ser numerosas, da parte mecânica até dispositivos a bordo.
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E ocorrer em diferentes níveis: entre um modelo de alto luxo como um Bentley e um de luxo Audi, e entre um Audi e um apenas básico VW, sendo que Bentley, Audi e VW integram o mesmo grupo.
Trabalhando na divulgação da Audi por quase 25 anos, eu tive que enfrentar várias vezes esse tipo de situação. Em 1998, o jornalista Luís Perez, do Caderno de Veículos da Folha de São Paulo, me pediu para entrevistar um representante da Audi que lhe pudesse explicar como a Audi convivia com essa questão, exemplificando com as semelhanças que havia entre os recém-lançados Audi A4 e VW Passat.
Segundo Perez, o jornal havia testado o Passat V6 2.8, que tinha o preço bem mais acessível do que o do Audi A4, mas trazia os mesmos motor, câmbio, sistema de tração e freios, entre outros equipamentos. Eles eram muitíssimo iguais entre si, só se diferenciavam no preço, de acordo com o jornalista.
O tema não era inédito para mim. Mas, ciente de que a pauta do colega poderia ser negativa para a marca, gelei assim mesmo com aquela pergunta. “Lógico”, respondi. “Vou conseguir uma representante de nossa diretoria para falar com você, o mais breve possível.”
Achei mais prudente recorrer ao vice-presidente da Senna Import, o Ubirajara Guimarães, que era um profissional experiente e um dos melhores comerciantes de automóveis que vi em toda a minha vida.
No dia e horário combinados, Bira, como é conhecido o empresário que era sócio da família Senna no negócio, conversou com o jornalista, por telefone, comigo a seu lado, em sua sala. Com o aparelho no viva-voz, fiz as apresentações de costume, deixando os dois à vontade para conversar.
O Bira, como sempre, foi muito simpático. Mas o Perez não perdeu tempo e logo iniciou a conversa perguntando se o lançamento do novo VW Passat prejudicaria o Audi A4, afetando não só as vendas como também a imagem do carro, pelo fato de os dois sedãs apresentarem tantos pontos em comum, o que, segundo ele, vulgarizaria o modelo de luxo que trazia o emblema das quatro argolas na grade dianteira.
Além da mesma plataforma, Perez relacionou componentes mecânicos idênticos nos dois carros, afirmando ironicamente que a maior diferença estava nos preços: “Passat e A4 são separados por nada menos que US$ 27.000”, disse. “Valor suficiente para comprar dois carros 1.0 populares”, acrescentou.
Antes de passar a palavra ao empresário, Perez ainda perguntou: “Se por um lado o novo Passat é o melhor VW de todos os tempos, será que o A4 também é o pior Audi de todos os tempos?”
O Bira, muito tranquilo, começou a responder pela última pergunta. “Não”, disse o vice-presidente enfaticamente. E seguiu afirmando que, depois do lançamento do novo Passat, as vendas do Audi A4 cresceram, na Europa. Honestamente, eu não sabia disso e muito menos como o Bira tinha conseguido aquela informação.
Mas era a vez de o sócio da Senna Import falar e, com habilidade, ele seguiu afirmando que um carro não se resume a plataforma e um grupo de componentes, que a Audi emprega materiais específicos na produção dos carros e que a diferença entre o Audi A4 e o VW Passat podia ser notada em coisas simples como um fechar de portas.
“Eu mesmo não tinha ideia dessa diferença das portas entre os dois modelos”
A explicação do Bira foi muito convincente. Eu mesmo não tinha ideia dessas diferenças das portas entre os dois modelos e fiquei até imaginando que ele estava comparando o seu carro de uso, o sedã topo de linha Audi A8, com o novo Passat.
Mas ainda mais importante em toda a fala do Bira foi o fato de ele reconhecer a semelhança entre os dois carros, afirmando que a Volkswagen adotava soluções da Audi para fortalecer sua imagem junto ao público. E finalizou da seguinte forma:
“É como construir uma casa na periferia da cidade e a mesma casa em um bairro nobre. O alicerce é o mesmo, mas o acabamento é completamente diferente”, afirmou o vice-presidente.
Com aquele discurso final, Bira obteve sucesso ao convencer o repórter de que Audi e VW eram carros diferentes e que o Passat jamais conseguiu comprometer a imagem do A4. Mas não conseguiu evitar o título provocativo que o jornal estampou no final de semana: “Passat, o primo pobre do Audi A4”.
Naquele dia, graças ao porta-voz que arrumei para falar com o jornalista, consegui virar um jogo que achava perdido antes de começar. A Volks saiu com a imagem chamuscada. Mas, nosso dever, meu e do Bira, era defender a Audi e isso a gente fez, mostrando as diferenças que de fato existiam entre os carros.
Jornalista, Charles Marzanasco trabalhou nove anos como repórter na QUATRO RODAS, dez anos como assessor do piloto Ayrton Senna e 25 anos na Audi.