Se este fosse um Livro do Bebê – aquela espécie de diário que descreve cada fase da vida dos recém-nascidos –, provavelmente começaria dizendo que houve muito planejamento antes dos finalmentes.
Afinal, não é qualquer família que decide esperar seis meses imaginando (e analisando) todos os detalhes da futura cria. Sem dizer que, depois disso, demora 21 meses de gestação até que, por fim, o carro seja dado à luz. Antes, era ainda mais…
Acompanhamos bem de perto o nascimento dessa nova Strada. Com expectativas dignas de futura herdeira da Família Real britânica, a picape encarou uma maré de azar logo depois do parto. Nasceu na hora errada, justamente quando a pandemia do novo coronavírus decidiu abalar o mundo inteiro.
Ela acabou ficando escondida dentro de casa até que as coisas melhorassem um pouco e, agora que está quase tudo bem, QUATRO RODAS decidiu fazer uma visita à mamãe Fiat para entender como isso tudo aconteceu.
Para minha surpresa, quem apareceu com essa ideia de novos rebentos não foram os engenheiros, mas uma equipe de marketing que vive fazendo pesquisas para saber o que as pessoas querem comprar.
Se para os humanos tudo é surpresa, no caso dessa picape, os próprios padrinhos decidiram como seria a aparência: olhos de Argo, orelhas de Mobi, jeito de Toro… Mais que isso, eles conseguiram antecipar até o comportamento da caçula (nas pistas) só com programas de computador.
Pelo que disseram, antes eram necessárias muitas tentativas até chegar ao filho perfeito. Só que isso significava gastar (muito) mais dinheiro, fugir de jornalistas e esperar bem mais até poder andar pelas ruas como faria um carro normal.
E se a gestação ainda precisa das quatro fases – que serão detalhadas ao longo desta reportagem –, é porque existe toda uma burocracia oficial de documentações e certificados que exigem validação na vida real. Senão, bastaria um ultrasso… ops! modelos matemáticos em 3D.
PRIMEIRO VEM A MULA
Neste estágio, a nova Strada nem parecia um carro de verdade. E não é só jeito de falar: coração e todas as partes vitais – ou seja, conjunto mecânico, estrutura inferior e suspensão – já vêm do modelo final. Mas todo o restante é feito à base de remendos.
No caso dessa unidade que conhecemos de perto, boa parte da carroceria era emprestada da geração anterior, com uma pitada de Mobi na dianteira e faróis pendurados de Argo.
“Essa mula é a primeira versão física depois que o produto passou pela validação virtual. Ela ainda não tem a carroceria definitiva, mas já nos permite fazer as primeiras calibrações de motorização com os fornecedores. Além disso, dá para colher alguns sinais da suspensão, que, até então, foi definida somente por meio de cálculos”, explica Silvio Piancastelli, gerente de desenvolvimento de conceito da FCA na América Latina.
É claro que uma gestação, até mesmo quando se trata dos carros, não á nada barata: são feitas pelo menos 50 unidades nessa fase e cada uma delas custa R$ 300.000. Para ter ideia, é quase quatro vezes o valor pedido pela opção topo de linha Volcano, que está à venda por R$ 79.990.
Mas nem preciso dizer para evitar as comparações, né? No caso da mula, a segunda fileira não tem cintos de segurança (e por isso é meramente decorativa), a cabine é cheia de adaptações e não faltam luzes de aviso piscando no painel.
“É esse modelo aqui que vai me dizer se aquilo que fiz na fase virtual está adequado ou não. Se ainda precisa de algum refinamento. Às vezes, o peso que pensamos que o modelo teria não é exatamente o que está aqui. Por isso mesmo, esse veículo não tem nenhum dos componentes de plástico definitivos, como painel de portas, nem quadro de instrumentos ou até os bancos. Eles simplesmente não servem para essa fase de adequação mecânica”, diz Piancastelli.
“No desenvolvimento da primeira geração da Strada, nos anos 1990, ainda se faziam desenhos. Hoje, já dá para simular tudo. Quando o carro sai para circular nas ruas, é porque já está pronto. Ele vai certificar, não testar. Então, já está tudo validado: dinâmica, segurança, chassi e elétrica. O nível de correlação do carro virtual é de 99%”, afirma Márcio Tonani, diretor de desenvolvimento do produto da FCA na América Latina.
DEPOIS, O PROTÓTIPO
Nesta segunda fase, batizada de protótipo, a picape continua praticamente igual à mula – até porque as duas têm camuflagem pesada e algumas adaptações. Aliás, como na etapa anterior, esse modelo é construído em uma linha de produção à parte, que pertence à engenharia, com 50 funcionários.
Os processos são praticamente iguais à manufatura normal, só que em menor escala. E, para manter o segredo, as unidades já saem cobertas lá de dentro.
“Usamos muitas mulas no desenvolvimento, mas já não fazemos protótipos como antes. E isso ajuda a reduzir o tempo desse processo, que antes levava em torno de 40 meses [13 mais que agora]”, conta Tonani.
Considerando apenas o bolso, essa etapa é ainda mais dolorida, já que cada protótipo custa à empresa de R$ 500.000 a R$ 600.000. E, para a nova geração da picape, foram feitas 25 unidades. Para a anterior, há mais de 20 anos, precisou do triplo.
“Neste carro já temos componentes externos de acordo com o modelo definitivo. Essas peças, como portas, carroceria, lateral e caçamba, são feitas em estamparias provisórias. Mas o tipo de material, conformação e estampagem é tudo igual, o que me garante o desempenho e a segurança do modelo final. Utilizamos essas ferramentas de baixa produtividade porque elas nos permitem reduzir o tempo para produzir as unidades para testes”, diz Piancastelli.
Do lado de dentro, é praticamente tudo igual ao modelo anterior: peças adaptadas de outros automóveis da marca e coberturas de lona preta por todos os lados. Pelo menos já daria para testar esse protótipo com os passageiros de verdade sentados na segunda fileira.
Isso porque, apesar das adaptações (basta dar uma olhada no banco bem mais estreito e que deixa uma parte de feltro à mostra), essas unidades já recebem os cintos de segurança funcionais.
“Nesta etapa começamos a avaliar acústica e vibração. Então, dá para fazer análises para entender, por exemplo, como está a parte de pacote acústico. Ou então os ruídos de cabine, suspensão, motorização e pneus. Também dá para progredir na calibração da parte mecânica, porque já temos o peso do carro ainda mais próximo da realidade, assim como a suspensão, para finalizar esses parâmetros”, explica Piancastelli.
QUASE DEFINITIVO
Nesta terceira etapa, batizada na Fiat de Verifica Processo (termo italiano para… Verificação de Processo!), a Strada já sai da linha de produção. Diferentemente do protótipo, agora a estamparia é definitiva justamente para certificar que toda a montagem está de acordo com o padrão.
A cabine também aparece com a forma final pela primeira vez, só que falta um detalhe: ainda não há texturização das peças plásticas.
“Isso serve para manufatura, qualidade e engenharia fazerem qualificação de componentes e garantir que não haverá deformação ou outros problemas. Também são feitos testes de confiabilidade, que exigem estatística e precisam de muitas unidades para análise de garantia e durabilidade de itens sujeitos a trocas (como amortecedores). Por isso, são feitos até 150 carros”, diz Piancastelli.
UNIDADES PRÉ-SÉRIE
“Nesta fase, temos todos os componentes definitivos, texturizados, qualificados. Então, ela serve principalmente para alguns afinamentos na linha de produção, quando necessários, e para os testes de confiabilidade da área de qualidade. Porque esse modelo é igual àquele que irá ao cliente. Tudo já está homologado, validado, certificado pelos diferentes departamentos”, conta o gerente de desenvolvimento de conceito.
Um detalhe interessante é que, nesta etapa final, a camuflagem é utilizada apenas como um recurso de marketing – aliás, esse é o departamento responsável por definir quanto cada fase deixará à mostra.
E, apesar do número de chassi e da homologação, essas unidades não podem ser vendidas e acabam destruídas junto às demais. É hora de ceder espaço ao modelo definitivo.
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