Carro movido a água enganou militares mas novo projeto pode salvar aviação
De inventores polêmicos a metais raros, desejo antigo do carro movido a água é desafio da ciência e oportunidade para charlatões
![Carro a água já foi sonho da Ditadura e tende a renascer com outra tecnologia](https://beta-develop.quatrorodas.abril.com.br/wp-content/uploads/2022/04/Banner1.jpg?quality=70&strip=info&w=1280&h=720&crop=1)
Em 22 de junho de 1976, Alagoas foi palco de um evento histórico, que contou com a presença do então governador Divaldo Suruagy e mais 200 convidados. Na ocasião, o engenheiro francês Jean Pierre Chambrin demonstrou seu incrível carro movido a água, que, segundo a Folha de S. Paulo, percorreu 25 km a 80 km/h, sem qualquer problema.
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O “fato histórico” gerou comoção e estímulos para que o Governo Federal comprasse a ideia de Chambrin, que garantia adaptá-la a qualquer veículo nacional. O engenheiro caiu no gosto do ditador Ernesto Geisel, que foi pessoalmente conferir a geringonça.
Com membros do governo firmando sociedade com o francês radicado no Brasil, logo a iniciativa virou uma grande confusão. A viabilidade do reator jamais foi confirmada por outros especialistas e, no fim das contas, apenas o estado do Rio Grande do Sul se interessou pelo projeto, que acabou em litígio e uma oficina lacrada até 2011.
Chambrin morreu em 1989, acusando diversas pessoas de sabotagem e atraindo desconfiança tanto pela dificuldade em replicar seus resultados quanto pela falta de transparência.
![Chambrin Jean Pierre Chambrin se mostrou bom de manchete, mas ruim de resultados verificáveis](https://beta-develop.quatrorodas.abril.com.br/wp-content/uploads/2022/04/Chambrin-1.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Mover um carro a água parece uma obsessão nacional, e basta jogar essas três palavras no Google para que soluções mágicas — supostamente boicotadas por um forte lobby das montadoras — apareçam. Mas as leis da natureza não ligam para isso.
Verdade amarga
De acordo com o gaúcho Zero Hora, que teve acesso à patente de Jean Pierre Chambrin, seu invento consistia em aproveitar os gases de escape para acelerar a reação do etanol com a água, produzindo hidrogênio e monóxido de carbono. O que por si só já é um problema, dado que esse segundo produto da reação é venenoso e contribui indiretamente para o efeito estufa.
O engenheiro automotivo Renato Passos explica que o francês criou uma pequena caldeira, muito usada em indústrias para aproveitar calor que seria desperdiçado. Chambrin, entretanto, subvertia a lógica ao primeiro gerar calor para depois realizar sua reação química, que levava 50% de álcool.
No fim, se gastava mais energia do que era levada ao motor, que ainda funcionava com menos potência e torque dadas as modificações necessárias.
“Ainda haveria problemas ligados à durabilidade e troca de calor das partes móveis”, destaca Renato, citando as altas temperaturas envolvidas no processo. Outras dificuldades envolviam o uso exclusivo de água desmineralizada e a necessidade de pré-aquecer o reator com combustíveis convencionais.
Segunda chance
Atualmente, o uso de H2 evoluiu bastante, e já há veículos como o Toyota Mirai que utilizam-no em estado líquido para gerar energia. A diferença é que em vez de queimar hidrogênio em um motor convencional, são feitas reações químicas que alimentam um motor elétrico.
![toyota_mirai_z_62 Toyota Mirai utiliza hidrogênio líquido para gerar energia elétrica. Modelo está à venda no exterior](https://beta-develop.quatrorodas.abril.com.br/wp-content/uploads/2022/04/toyota_mirai_z_62.jpeg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Para abastecer um carro a células de hidrogênio, basta conectar uma mangueira e, como se fosse gasolina, encher o tanque. No veículo, uma membrana altamente engenhosa separa os elétrons e gera corrente elétrica, ao mesmo tempo que solta água como produto final.
![toyota_mirai_467 Célula de combustível fica sob o capô, enquanto os tanques de hidrogênio ficam próximos ao solo](https://beta-develop.quatrorodas.abril.com.br/wp-content/uploads/2022/04/toyota_mirai_467.jpeg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
No Mirai, 141 litros de hidrogênio rendem até 850 km de alcance. É como se cada quilograma de combustível gerasse 152 km de autonomia a um carro de 174 cv, que limpa o ar à medida que viaja. Unindo o melhor dos carros elétricos e a combustão, por que isso não é um sucesso retumbante?
A conta não fecha
A resposta simples envolve o gasto energético para se produzir energia. Atualmente, todos os processos de geração de hidrogênio são altamente “gastões”, e, além de caros, têm eficiência muito pequena frente às baterias.
De 100% da energia que sai de uma usina, cerca de 95% chega aos carros a baterias, uma vez que a única perda nesse processo ocorre na resistência dos fios de transmissão. No caso do hidrogênio, essa energia ainda precisa de alimentar processos como a reforma a vapor ou eletrólise, que, no melhor dos casos, já gasta cerca de 14%.
![Estação de produçãode hidrogênio da Toyota Estação de produção de hidrogênio da Toyota gera até 8,8 kg do gás por dia, mas consome energia significativa](https://beta-develop.quatrorodas.abril.com.br/wp-content/uploads/2022/04/Estacao-de-producaode-hidrogenio-da-Toyota.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Para alimentar o Mirai, a Toyota desenvolveu miniusinas anexadas aos postos de combustível, capazes de reformar localmente compostos como gás natural ou querosene. Para armazenar o H2, entretanto, é necessário gastar ainda mais energia, seja para pressurizá-lo ou para resfriá-lo.
![Posto de hidrogênio da Shell Postos de hidrogênio são mais complexos que tomadas de carregamento e gastam energia mesmo quando estão inoperantes](https://beta-develop.quatrorodas.abril.com.br/wp-content/uploads/2022/04/Posto-de-hidrogenio-da-Shell.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Uma alternativa óbvia é produzir hidrogênio no “atacado”, diminuindo os custos de armazenamento. Mas a conta segue desvantajosa, pois são necessários gasodutos ou caminhões especiais para o transporte, que acabam gastando ainda mais energia.
Assim, não chega a surpreender que, para abastecer um Mirai, sejam gastos aproximadamente US$ 90. Em lugares onde já existem postos do tipo, completar um carro a hidrogênio pode custar seis vezes mais do que carregar as baterias de um elétrico convencional.
Futuras soluções
Para a conta do hidrogênio fechar, há quem acredite no poder do boro, um elemento químico escasso e com 60% das reservas mundiais concentradas na Turquia. Em 1953, o cientista Hermann Irving Schlesinger descobriu que era possível utilizá-lo para extrair o hidrogênio da água sem acrescentar energia elétrica, mas, mesmo com diversas tentativas, seu uso ainda não decolou.
![Boron_R105 Daqui a algumas décadas, pode ser que a maioria dos carros utilize boro](https://beta-develop.quatrorodas.abril.com.br/wp-content/uploads/2022/04/Boron_R105.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Além da escassez do boro, sua reação exige grande quantidade de água desmineralizada, encarecendo o processo. Ele também é lento, e para gerar um mísero mL de H2, são necessárias até três horas de reação. Desse modo, o desafio da vez é criar um catalisador que acelere esta produção.
Muito se aposta nas chamadas redes organometálicas, que unem metais e compostos orgânicos de maneira altamente complexa. Um estudo recente de pesquisadores chineses e franceses mostrou que uma dessas redes, chamada ZIF-8, permite a geração de até 70 mL em 10 minutos — suficiente para encher o tanque do Mirai em… duas semanas.
![57a3940e0e2163457524ffd5sofc_frq.jpeg SOFC_FRQ](https://beta-develop.quatrorodas.abril.com.br/wp-content/uploads/2016/11/57a3940e0e2163457524ffd5sofc_frq.jpeg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
A reforma a vapor também é muito estudada por cientistas brasileiros, que pretendem criar um veículo abastecido a etanol e que gere, internamente, o que a Toyota faz com máquinas grandes e caras. A Nissan desenvolve um deles desde 2010, e até hoje não foi possível chegar a resultados adequados ao mundo real.
![Nissan unveils worldÕs first Solid-Oxide Fuel Cell vehicle Tecnologia SOFC utiliza etanol para gerar energia elétrica](https://beta-develop.quatrorodas.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/06/Nissan_SOFC-7.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Um dos maiores problemas é o uso de platina e irídio como catalisadores, encarecendo demais o preço de um carro de passeio. A marca agora busca usar catalisadores de níquel, cobalto e nióbio, muito mais baratos, para permitir que o etanol dê origem ao gás elementar do Universo.
Mas não é simples assim, pois o atual reator funciona a pelo menos 600 º C e, segundo pesquisadores da universidade japonesa de Waseda, a temperatura máxima não deve ultrapassar 300º C. Nesse momento, cientistas da USP, Unicamp e Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares quebram a cabeça para resolver essa questão, mas não esperam resultados concretos antes de 2026, diz a Revista FAPESP.
![p1 2 sistema que mostra o funcionamento do SOFC](https://beta-develop.quatrorodas.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/06/p1-2.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
O Brasil, na verdade, tem uma pequena corrida em busca desse carro mágico que, além de tudo, poderia manter a longevidade do parque industrial de cana-de-açúcar (o que não necessariamente é bom para todos). A Volkswagen, por exemplo, foi outra que entrou na briga e, no ano passado, criou um centro de pesquisa voltado ao potencial do etanol.
Boa e velha gasosa
Quem optou por um caminho bem distinto dentro do Grupo foi a Porsche, que triplicou a aposta em sua gasolina sintética — que, veja só, tem o hidrogênio como parte fundamental do seu processo.
A diferença é que a usina de Haru Oni, no Chile, obterá o gás pelo processo de eletrólise, no qual será usada eletricidade produzida por turbinas eólicas dentro da fábrica. Em seguida, ele é usado para produzir metanol — um “irmão” do álcool de posto — que também leva na fórmula carbono extraído do principal gás estufa do planeta.
![Haru Oni Obras durarão poucos meses](https://beta-develop.quatrorodas.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/09/Haru-Oni.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
É uma diferença importante, já que a célula brasileira ainda emite CO2 pelo escapamento. O metanol recém-criado em seguida é transformado em gasolina como qualquer outra, e é uma aposta gigantesca da Porsche, que anunciou duas novas fábricas, nos Estados Unidos e na Austrália.
Há desafios grandes como o preço do litro, que, na melhor da hipóteses, não será menor do que US$ 2. É por isso que Michael Steiner, executivo de Pesquisa e Desenvolvimento da montadora, acredita no uso misturado com o combustível fóssil, atenuando os impactos do consumo de petróleo.
![gasolina-sintetica-e-fuel-e-benzin-audi-1588969670756_v2_1170x540 Amostra de eFuel, combustível sintético produzida em laboratório](https://beta-develop.quatrorodas.abril.com.br/wp-content/uploads/2020/05/gasolina-sintetica-e-fuel-e-benzin-audi-1588969670756_v2_1170x540.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Outra grande aposta é nos navios, que têm caminho muito mais longo e complicado a percorrer rumo à eletrificação. Para produzir combustíveis desses gigantes, explica Steiner a QUATRO RODAS, basta modificar a última etapa do processo, manipulando de maneira um pouco diferente o metanol verde.
Para ainda mais eficiência, diz Steiner, uma outra saída é usar o metanol em si como combustível. A Maersk, maior empresa de navios de carga do mundo, concorda, e já encomendou oito supercargueiros movidos por esse combustível.
![ROLLS-ROYCE AVIÃO 6 Peso das baterias inviabiliza aviões elétricos para longas distâncias](https://beta-develop.quatrorodas.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/12/ROLLS-ROYCE-AVIAO-6.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Para os aviões é uma solução ainda mais positiva, pois o principal dano à atmosfera vem da emissão, em altas altitudes, de óxidos nitrosos — algo reduzido drasticamente ao optar pelo álcool metílico. E o peso das baterias seria um problema para criar aviões elétricos funcionais capazes de alcançar longas distâncias.