Quanto custa e quanto tempo é preciso para salvar uma vida? Um crash-test frontal feito pelo Latin NCAP demora, em média, 4 segundos. A colisão propriamente dita é ainda mais rápida, com duração de 120 milésimos de segundo.
Só que essa efemeridade esconde meses de planejamento, “passageiros” mais caros que o próprio carro e um gasto superior a R$ 400.000.
Para entender o complexo processo do teste mais rigoroso da indústria automotiva, QUATRO RODAS foi até o campo de provas do ADAC, o maior automóvel clube da Alemanha, em Landsberg, para conhecer o processo que “mata” centenas de carros visando salvar o maior número possível de vidas.
“Todos os testes são feitos na Alemanha porque não há laboratórios independentes no Brasil com a estrutura que precisamos”, explica Alejandro Furas, secretário-geral do Latin NCAP.
O complexo necessário para fazer todos os testes de colisão englobados pela entidade custa R$ 90 milhões e vai além do obstáculo de alumínio onde os carros colidem a 64 km/h.
Só a estrutura que fica por trás dos objetos em que o veículo vai bater inclui um bloco de concreto de 300 toneladas apoiado em uma fundação com 17 metros de profundidade, feita para absorver o impacto dos mais de 720 crash-tests anuais feitos no laboratório.
No local também há áreas para testes de atropelamento, avaliação de cadeirinhas e do efeito chicote, em que o banco do carro é acelerado rapidamente para a frente, simulando uma colisão traseira.
A estrutura onde ocorre esse teste, aliás, usa campos eletromagnéticos para permitir o pulso exato de aceleração e tem a mesma tecnologia adotada nas catapultas de aeronaves da nova geração de porta-aviões dos Estados Unidos.
Tão moderno quanto são os dummies, os bonecos usados para simular o corpo dos passageiros e projetados especificamente para cada tipo de teste.
Os preços de cada dummy variam, mas a nova geração dos aparelhos que está sendo testada pelo NCAP tem custo unitário superior a R$ 4 milhões.
O uso desses bonecos cheios de sensores praticamente eliminou uma necessidade mórbida da indústria: a adoção de cadáveres nos testes de impacto.
No entanto, ainda são usados corpos doados para a aferição dos dummies e testes que fogem do escopo tradicional do setor, como no desenvolvimento dos cintos infláveis da Ford.
Normalmente os carros testados pelo Latin NCAP são comprados em concessionárias, por um funcionário que se passa por cliente da marca – exatamente como QUATRO RODAS faz na aquisição dos modelos de Longa Duração.
No entanto, a ONG permite que fabricantes cedam carros que ainda não foram lançados, abrindo caminho para usar os resultados (normalmente favoráveis) na campanha de estreia do carro.
Para isso as regras são ainda mais rígidas e passam pela escolha de um veículo a esmo no pátio do fabricante, a lacração da unidade e, posteriormente, a compra de um novo automóvel na concessionária para repetir o teste e aferir se os resultados são os mesmos.
Todo esse trâmite custa até R$ 500.000, sem incluir o preço do veículo. Muitos testes são patrocinados, com a montadora reembolsando o Latin NCAP após a compra na concessionária, mas a entidade também usa seus recursos, que vêm do Global NCAP e FIA (Federação Internacional de Automobilismo), para testar modelos que sejam relevantes para o mercado latino-americano.
A existência dos testes patrocinados faz com que alguns críticos contestem sua credibilidade, pois normalmente os fabricantes que se propõem a bancar o crash-test já sabem, graças a testes internos, que seus veículos terão bons resultados.
Mas isso não é uma regra, já que a QUATRO RODAS presenciou de perto a quebra desse padrão. Na ocasião de nossa visita estava sendo avaliado o novo Renault Sandero, que passou a oferecer airbags laterais de série. A marca estava confiante que isso bastaria para que o hatch (e o Logan) superasse o resultado ruim obtido na última avaliação de colisão lateral.
Mas uma discrepância entre as unidades brasileira e colombiana (veja mais no texto da pág. 79) alterou os resultados e provocou uma correria dentro da marca francesa.
Quando o automóvel chega à Alemanha, técnicos do Latin NCAP conferem a integridade dos lacres e preparam o veículo para o teste. A primeira coisa a ser feita é a medição a laser: ela permitirá avaliar com precisão o tamanho da deformação de cada componente após o teste.
Depois entram em cena os icônicos adesivos pretos e amarelos, que servem como indicador visual da deformação das chapas e movimentação do veículo e dummies na cabine. As lanternas são removidas para a passagem do “cordão umbilical”, cabo que liga os computadores fixados no porta-malas à central de comando.
A unidade é pesada, e os valores devem coincidir com o divulgado pela marca. Se houver discrepância para menos (um veículo mais leve tem melhor desempenho no teste), pode-se adicionar água no tanque de combustível para chegar ao valor oficial. Isso não é um problema para o motor, que fica desligado – o teste é feito apenas com a ignição acionada, o que mantém ativos todos os airbags e pré-tensionadores.
Câmeras são fixadas no teto e complementam as imagens feitas pelas filmadoras de alta velocidade posicionadas ao redor do local da colisão. Esses aparelhos de última geração podem captar até 4.000 quadros por segundo (em um filme de cinema são 24), permitindo uma análise detalhada de toda a batida.
Só que, para isso, é preciso de muita luz. Um painel de 300 kW com dezenas de lâmpadas supre essa necessidade, mas gera uma luz tão intensa que só é acesa momentos antes do teste.
Os bancos são posicionados na metade do ajuste de distância do assento e altura, enquanto a inclinação do encosto é deixada em um ângulo próximo a 90o. Todas as medições são feitas usando equipamentos eletrônicos, e marcas são feitas nas peças para garantir que sua posição não mude durante o procedimento de colocação dos dummies.
Por fim, alguns modelos requerem um pequeno furo na maçaneta. Ele é usado para, depois da batida, aferir a força necessária para abrir cada uma das portas usando uma balança por mola, similar à usada para pesar bagagens em casa.
O alinhamento do veículo com a pista de 73 metros é feito usando um pequeno peso preso por um fio. Dois pinos, um na barreira e outro no carro, são posicionados em direção ao centro de um pequeno adesivo de 2 cm de diâmetro colocado do lado oposto.
Após a colisão, eles são a primeira coisa a ser checada: se não tiverem acertado o alvo, é um indicativo de que o veículo bateu de forma desalinhada, e o teste é invalidado.
Com o carro preparado, um pequeno reboque elétrico o leva para o início da pista, onde há uma câmara fria com portas retráteis. Ela é usada para climatizar o carro a 20 oC, equalizando a temperatura independente da estação do ano em que o teste é realizado.
A última coisa a ser feita antes da batida é a pintura de diferentes partes do dummie com uma tinta fresca. Isso permite que os técnicos saibam exatamente onde cada parte do boneco encostou no veículo.
Após a batida, o cenário idêntico ao de um acidente de trânsito tem protocolos tão rigorosos quanto os de um resgate real. Um exaustor é colocado nas janelas (mantidas abertas para evitar reflexos na filmagem) para retirar o gás do propelente do airbag, enquanto outro funcionário varre pedaços de vidro e peças quebradas ao redor do carro.
Técnicos fazem fotos de diferentes detalhes da cabine e das portas, que devem se manter fechadas na batida e ser facilmente abertas depois.
Por fim, são avaliados os danos da carroceria e do dummie, que pode ter que ser parcialmente desmontado para sair da cabine caso fique preso nos destroços.
Os resultados brutos são enviados para o fabricante, que também pode acompanhar o teste e até ficar com o veículo após a colisão.
O resultado é apresentado antecipadamente à marca, mas ela não tem poder de questionamento e está sujeita a punições caso piore o conteúdo do carro depois do teste – se perder os airbags extras, o Onix Plus não será mais cinco estrelas, por exemplo.
Mas, considerando a importância cada vez maior que o consumidor está dando para a segurança, nenhuma marca colocará a perder os 4 segundos mais importantes de um automóvel.
Desvio de rota
Fazer um automóvel que obtenha excelência nas provas de impacto custa caro, mas algumas marcas possuem seus truques para obter melhores resultados sem elevar o custo de desenvolvimento do carro.
A mais antiga é fazer um carro assimétrico: como os testes de colisão eram sempre feitos de um mesmo lado, apenas aquela metade da carroceria era reforçada. A solução foi simples: agora os testes de batida lateral são feitos de forma aleatória, com qualquer um dos lados.
Outra tática, usada pela Renault com o Duster, é discutível, mas permitida pelas regras. Para ser avaliada pelo protocolo antigo, menos rigoroso, a marca patrocinou em 2019 o teste do SUV com uma unidade romena, destinada ao Chile.
Neste ano, o Latin NCAP irá repetir a prova com uma versão brasileira do novo Duster, para garantir que os padrões foram mantidos. A avaliação de quatro estrelas para proteção aos adultos, entretanto, está garantida.
O que mudou?
O protocolo do Latin NCAP que estreou este ano é válido até 2024 e inclui exigências ainda mais rigorosas para se obter a pontuação máxima. Agora a nota é uma só, e se o modelo for mal na proteção para adultos ou crianças, não terá mais cinco estrelas.
Também será avaliada a proteção para pedestres e a inclusão de assistentes ativos, como alerta de veículo no ponto cego, aviso de mudança de faixa e frenagem autônoma de emergência.
Bolsas diferentes
Por padrão, o Latin NCAP avalia a versão mais simples dos carros e na “pior” configuração possível para o teste. Rodas de liga leve são preferidas por serem mais duras (e transferirem mais energia à carroceria).
Nos modelos que possuem a mesma estrutura entre hatch e sedã, a carroceria três-volumes é usada nas provas de impacto lateral por conta do maior efeito alavanca provocado pelo comprimento do veículo.
Outra tática é avaliar modelos produzidos em locais diferentes, como foi feito no teste do Renault Sandero, com um Logan brasileiro e um hatch colombiano. Só que o airbag lateral do modelo paranaense é menor, e resultou em avaliações piores do que a versão feita no país vizinho.
Para garantir a boa pontuação obtida pelo Sandero colombiano, a Renault se comprometeu a trocar o airbag das versões brasileiras por um equivalente (e melhor) ao usado em outros mercados.