* reportagem originalmente publicada em agosto de 2010
Ayrton Senna teve a rara oportunidade de escolher qualquer ponto no planeta e construir ali o seu lugar do jeito que quisesse. Resolveu fazer duas vezes, uma casa de praia em Angra dos Reis (RJ) e esta fazenda em Tatuí (SP).
O mundo que ele criou é assim: árvores foram plantadas porque dão frutos apreciados pelos pássaros da região. Há uma plantação de milho doce, raro no Brasil, que é comido com manteiga feita de leite caseiro e suco feito de caju colhido no pé. No grande lago, peixes vêm comer na mão com uma fome que surpreende.
Milton Senna, pai de Ayrton, pede cuidado aos visitantes: “Outro dia, o presidente Lula veio conhecer o lago. Disse para ele ir devagar, mas respondeu que não precisava de conselho, que pescava desde pequeno e tudo mais. Veja só, acabou perdendo o dedo”. Os 83 anos de idade não lhe tiraram a picardia. O senhor Milton fala sério e faz piadas, é discreto, mas se impõe.
O mundo que Senna criou é simples, com casas de tijolo aparente. Ambição, se existe, é a de manter tudo em ordem. Não há grama crescida e mesmo um Voyage branco, com mais de 20 anos, parece em boa forma.
Um antigo funcionário conta que Ayrton inspecionava não só seus próprios carros, mas também a frota de serviço. Quando encontrava algo sujo ou com defeito, chamava o responsável. Não dava bronca. Perguntava o motivo e como podia ajudar a resolver. E então ia atrás do que fosse preciso, em busca da perfeição.
Dentro de seu mundo, Senna escolheu um lugar para chamar ainda mais de seu. Uma casa à beira do lago, não mais de 200 m2, feita para guardar seus brinquedos de gente grande.
No andar de baixo, motos, bugue, quadriciclos e um barco. Um pequeno guindaste foi instalado no teto para poder tirar os jet-skis do suporte e levá-los até a água. Para evitar fios de extensão, tomadas elétricas são enfileiradas na parede em intervalos de 1 metro. Idem para os pontos de ar comprimido, para encaixar mangueiras de engate rápido.
A porta elevadiça de madeira e as escadas, com piso antiderrapante, levam ao segundo andar.
Na parede e em prateleiras, máquinas de terra, mar e ar: sete carros, um hovercraft, um helicóptero, sete aviões e duas lanchas, tudo por controle remoto. “O caça na prateleira acima da janela é um F-18 Hornet. Parece a jato, mas tem hélices dentro”, diz o primo Fábio Machado, companheiro de brincadeira.
“Esse aviãozinho vermelho não tem controle de aceleração. Você liga o motor e joga para a frente, para ele sair do lugar. Controlar é difícil, porque não há como modular a velocidade. O Ayrton usava no mirante de Santana, perto de onde moravam. Quando o combustível acabava, após uns 10 minutos, tinha que controlar o avião planando pelas ruas do bairro, no meio do trânsito, enquanto achava um lugar para descer.”
“O que tem escrito Dash 45 era muito rápido, o Marlboro também, era desses que ele gostava. O verde, cinza, azul e amarelo tem motor de quatro tempos, é um avião mais de força que de velocidade. Foi presente do pessoal da Honda, após o título de 1991.” A miniatura 1:10 do Honda NSX, carro que Ayrton ajudou a desenvolver, foi presente de concessionários da Bélgica: “Honda belgian dealers 25-08-1991”.
Isso é um ponto importante na pequena frota. A maior parte das miniaturas não foi comprada, algo que qualquer rico como ele seria capaz de fazer. Foi ganha. Alguém se dedicou a procurar, escolher e presentear, com dedicatória. “O Ayrton gostava de colecionar esse tipo de coisa”, diz Fábio. “A Renault tirou o turbocompressor do carro que o levou à primeira vitória, pela Lotus, prendeu num pedestal e deu de presente. Ele gostava mais disso que dos troféus.”
Dentro de dois baús, caixas de sapato dos anos 80 guardam as peças de reposição. Trens de pouso, rodas e motores ainda fechados na embalagem, tudo identificado pela caligrafia algo tortuosa de Ayrton. No meio da ordem, o bico de um aeromodelo estraçalhado. “Foi esse o avião que ele quebrou quando derrubou o meu”, diz Fábio. “Ficou guardado.”
Enquanto jet-skis e motos do primeiro andar continuaram em uso, o segundo andar foi congelado. O tempo ficou suspenso, parado em 1º de maio de 1994. Sob a bancada usada para montar e desmontar as miniaturas, garrafas de combustível e óleo continuam lado a lado, com lacre de fábrica – embora já tenham envelhecido o suficiente para não fazerem mais efeito.
A lata do spray anticorrosão já traz ferrugem além do superficial. Não é possível saber a data de fabricação porque são de uma época em que as embalagens não traziam isso. “Cinco anos depois, eu voltei a entrar aqui”, diz Milton. “A parafusadeira elétrica ainda tinha carga na bateria. Agora parou.”
Durante a tarde de reportagem, a travessa de uma cadeira se quebrou. É uma cadeira dobrável feita com ripas de madeira, comum em salões de festas e botecos. Uma nova custa menos de 40 reais, mas Fábio guardou no carro: “Vou levar para restaurar em São Paulo.”
Parados há 16 anos, os objetos da sala começam a envelhecer. Quanto vão durar? Manter tudo arrumado, como se Ayrton estivesse prestes a chegar de viagem novamente, ajuda a preservar a memória.
Ao mesmo tempo, a vida longa daqueles brinquedos nascidos para durar pouco reforça o absurdo do que aconteceu naquele dia de maio de 1994. “É tão estranho”, diz Fábio. “Às vezes as pessoas vão tão de repente… Como as coisas duram, né?”