Ar-condicionado, vidros elétricos e direção hidráulica não eram itens comuns nos carros compactos em 1990. Mas àquela altura o brasileiro já havia se desacostumado com o nível de simplicidade de carros como o Fusca Pé de Boi e o Renault Teimoso.
Tudo mudou com o lançamento do Fiat Uno Mille. Tudo mesmo.
O mercado estava blindado pelo IPI, o imposto sobre produtos industrializados. Enquanto carros com motores entre 1.000 e 1.500 cm³ pagavam 35% de imposto, os que tinham motores menores, entre 800 e 1.000 cm³ eram taxados em 40%. O fabricante que apostasse em um motor menor, seria punido pela carga tributária.
A mudança reduziu o tributo a 20%, despertando o interesse dos fabricantes nos motores de 999 cm³. Foi um movimento fundamental para o nascimento dos populares 1.0.
Mas àquela época o que o governo queria era movimentar a economia. Carros mais baratos aumentariam o acesso da população a carros novos, a demanda extra daria fôlego para a indústria nacional, que ocuparia sua capacidade ociosa e geraria novos empregos.
A produção em maior escala também ajudaria a lidar com a “ameaça” da recente reabertura das importações de veículos, uma promessa eleitoral do então presidente Fernando Collor cumprida meses antes. E, claro, houve momentos de tensão entre o governo e a indústria automobilística.
Na verdade, tudo isso durou cerca de três meses.
Em maio de 1990, irritado com a cobrança de ágio em carros novos, Collor cobrou de sua ministra da Economia, Zélia Cardoso, um plano de mudanças na legislação da indústria automotiva.
Quando o plano saiu do papel, a Fiat já tinha seu novo carro pronto.
Foi muito fácil para a Fiat sair na frente. Isso porque ainda produzia o velho 1.050 cm³ do 147. Se no Brasil este motor só havia sido oferecido no Uno em 1984 e 1985 (o brasileiro preferia o 1.3 de 57 cv), ainda equipava unidades exportadas para Argentina e Itália.
Bastaria enquadrar o motor na nova alíquota de IPI. Um novo virabrequim diminuiu o curso dos pistões de 57,8 para 54,8 mm, passando aos 994,4 cm³. A nova carburação e o comando de válvulas trocado para garantir maior torque em rotações menores garantiu os 48,5 cv e 7,4 kgfm. Comparado aos 52 cv e 7,8 kgfm do motor 1.050, o rendimento era bom.
O nome não poderia ser mais adequado: Uno Mille. E ele já estava pronto para ser testado, com exclusividade, na edição de agosto de 1990 de QUATRO RODAS.
Por fora era como qualquer outro Uno S 1.3, mas tinha a primazia de ter barra estabilizadora dianteira e um braço tensor mais robusto que só chegariam às outras versões em 1991. Por outro lado, era pelado como não se via desde os anos 1960.
Tudo que o Uno Mille não tinha
Não era apenas uma questão de se valer de impostos mais baixos, mas também de encontrar meios de deixar o carro o mais barato possível. Para isso valia até mesmo tirar itens úteis.
Um bom exemplo é que apenas no Mille o câmbio padrão era de quatro marchas, enquanto o de cinco era opcional.
O comprador também teria que pagar a mais para ter retrovisor direito, bancos dianteiros reclináveis e com encosto de cabeça (ambos ainda não eram obrigatórios) e lavador e desembaçador traseiro.
Não havia saídas de ar laterais e o lavador do para-brisas era acionado por uma bombinha de borracha no pé do motorista – como no Fusca, que havia deixado de ser produzido em 1986 e vivia seu lapso histórico até o relançamento em 1994.
Podia ser pior: naquela edição de agosto a Fiat cravava que até o servofreio seria opcional. Mas, por sorte, a fabricante italiana não deixou repetir outra semelhança com o velho Fusca quando o Mille chegou às concessionárias.
Os únicos luxos no carro era o veludo na parte central dos bancos, as colunas traseiras forradas e o tampão do porta-malas – hoje raridade nos SUVs para PcDs.
O preço final era interessante. Por 625.000 cruzeiros, seus concorrentes eram os Uno S 1.3 88, os Chevrolet Chevette SL 87 e o VW Gol S 1986. Usados, claro. Os equivalentes zero-km deles superavam em mais de 100.000 cruzeiros o preço do Mille.
Não pense que o Mille era mal quisto. Quando até os carros nacionais mais caros tinham versões sem pintura nos para-choques, maçanetas e retrovisores, o Uno 1.0 se passava por um Uno qualquer nas ruas.
O desempenho também era considerado honesto, dada a leveza do modelo (768 kg, apenas), e rendia linhas como essas:
“Esse desempenho é sentido claramente por quem conhece o Uno e dirige um Mille no trânsito. O usuário comum não notará diferença em relação ao Uno S, de motor 1.3. Só se a vocação do Mille for desvirtuada – não se espere grande desempenho, por exemplo, no uso frequente em estradas com longas subidas e em regime de plena carga – é que as dimensões reduzidas do motor se evidenciarão. Na cidade e no plano, sobretudo, não parece um carro de apenas 1.000 cilindradas”, dizia o teste publicado em setembro de 1990.
Se defeitos eram apontados? Sim: porta-malas pequeno, alto nível de ruído interno e poucas mordomias. Mas deu certo. Principalmente porque concorrentes demoraram para aparecer.
O primeiro deles foi o Gol 1000, apenas em 1992, com motor Ford de 50 cv. Depois veio o Chevette Júnior, com 1.0 também de 50 cv. O Ford Escort Hobby 1.0, com motor de 52 cv, só surgiria em 1994.
Era a turma do zero a 100 km/h em mais de 20 segundos, enquanto o Uno Mille, desde o lançamento, precisava de 17,3 s.
A despeito do início sofrido, os populares 1.0 deram certo e chegaram a responder por mais de 70% das vendas de carros novos em 2000. No primeiro semestre de 2020 responderam por quase 47%.
Hoje, os motores 1.0 têm três cilindros, turbo, injeção direta, duplo comando de válvulas variável e uma série de outras tecnologias para deixá-los mais potentes e eficientes. Não à toa, são encontrados desde um Mobi até um SUV, como o T-Cross.
Isso ajudou a deixar os carros de entrada tão mais caros a ponto de os carros populares estarem praticamente extintos. A esperança para a volta do carro popular agora recai sobre um plano de incentivos do governo que pode reduzir o preço dos carros em até 11% por até quatro meses.
E tudo começou com uma adaptação feita em três meses visando novas regras exigidas pelo presidente – que mais tarde cairia por causa de um escândalo envolvendo uma Fiat Elba, a perua do Uno. São as voltas que o mundo dá.